Ser uma péssima mãe deve ser uma parada difícil de lidar.
Eu, no entanto, só posso imaginar o que é viver algo assim. Não sou uma péssima mãe.
Sou uma péssima mãe atípica.
E se você é uma péssima mãe de uma pessoa com deficiência, então, meu bem, Satanás tem medo de você chegar ao inferno e roubar o lugar dele.
Ser uma péssima mãe é ruim; ser uma péssima mãe atípica é o fim.
Antes de seguir, duas coisas de importância diametralmente opostas, mas que cabe esclarecer.
A primeira - verdadeiramente importante - é que eu só sei da maternidade atípica de autista. Não sei o que se passa com as mães atípicas de filhos e filhas com paralisia cerebral, síndrome de Rett, síndrome de Down. Quer dizer, eu as vejo, eu as ouço, mas não tenho como falar de suas experiências.
A segunda - verdadeiramente desimportante - é que na “comunidade autista” há uma tentativa de separar as mães atípicas - mães que possuem, elas mesmas, algum nível de neurodivergência - das mães de pessoas atípicas, que seria meu caso, uma mulher típica com um filho atípico. Eu só desejo emprego para quem cria, desenvolve e se engaja nesse tipo de discussão. Muito emprego mesmo.
Assim, sigo me autodeclarando mãe atípica porque é mais fácil e só não entende quem não quer.
Sigo lendo Três camadas de noite com muita dificuldade. A autora é brilhante, mas eu sou uma péssima mãe atípica e não tem livro que se salve desse jeito.
“O advento da palavra falada causou uma tremenda revolução no nosso dia a dia” (Barbara, Vanessa. Três camadas de noite (Portuguese Edition) (p. 75). Fósforo. Edição do Kindle).
Certa vez, no extinto twitter, não lembro mais o tópico da conversa, eu interagia com Melina, outra mãe atípica, minha companheira no Flamengo da Gente (grupo político futebolístico de pessoas duplamente maravilhosas: flamenguistas e de esquerda), e percebi o quão péssima mãe atípica eu sou. O causo é que Melina respondeu a algo que eu tinha dito com “e tudo bem para mim se ele for não verbal.
Curti porque a educação manda, mas tudo bem não é. Não para mim. É sofrido pra caralho. Como disse, sou uma péssima mãe atípica.
As boas mães atípicas dão testemunhos nas redes sociais sobre como o filho autista de alto grau de suporte melhorou a vida delas, trouxe consciência política e social (eu já tinha), trouxe paciência (nunca tive e continuo sem), trouxe a valorização das coisas mais importantes da vida (eu continuo querendo ser rica e gostosa, mesmo que não vá ser rica para conseguir virar gostosa).
Eu trocaria consciência política, paciência, riqueza e gostosura pela fala do meu filho.
“Eu já nem percebia mais que estávamos em público: me lançava às explicações mais acaloradas sobre helicópteros e aviões, sobre capivaras e dinossauros, com a certeza de que receberia de volta perguntas pertinentes e comentários exaltados. Às vezes ele só imitava o meu tom de voz e irrompia em uma peroração muito comprida e enfática, da qual se identificavam uma ou outra palavra. Era o suficiente. Finalmente estávamos nos entendendo” (Barbara, Vanessa. Três camadas de noite (Portuguese Edition) (p. 76). Fósforo. Edição do Kindle).
Entender meu filho e me entender com meu filho sem precisar de 5 terapeutas me dando pistas para adivinhar o mínimo. Entender meu filho e me entender com meu filho ao ponto de saber onde dói, quando dói. Entender meu filho e me entender com meu filho ao ponto de inventarmos histórias sobre capivaras; de irmos a um bloquinho de carnaval cantando marchinhas; de viajarmos em carrinhos de supermercado por seções que mudam de lugar todo mês e ouvi-lo pedindo coisas muito caras, que fazem mal à saúde ou que simplesmente não fazem sentido.
Ah, mas é possível entender e me entender com meu filho sem palavras.
Poético, se eventual. Cruel, se perene.
Ah, sim, eu invisto em CAA, como vocês sabem pelos meus textos “técnicos”, e levo Zé 3 vezes por semana para a fonoaudióloga. Isso melhora minha situação de péssima mãe atípica? Nem um pouco.
Faço mais para evitar a culpa da negligência do que por acreditar nos resultados (e isso não tem nada a ver com a qualidade das profissionais envolvidas). Sem fé e sem esperança, essa sou eu. Uma péssima mãe atípica cumprindo protocolos. São 3 anos de fono, aba, t.o, e nada.
Eu queria que meu filho falasse. Eu assumo isso. Que a “comunidade” me considere uma péssima mãe por “não aceitar o filho como ele é”, não me incomoda. A “comunidade” nunca pagou um boleto aqui em casa.
Parte da “comunidade” busca reconhecimento. Outra parte, lugar no mercado. Há quem procure lugar no governo. Existem os que almejam o lugar de representação da sociedade civil.
Eu não quero nada disso. Eu queria ouvir meu filho falando as quatro palavrinhas mágicas.
O que me faz realmente uma péssima mãe atípica é não conseguir achar um motivo ou causa maior, uma explicação bonita e transcendental, uma performance de superação, um “lado bom”. Eu queria que meu filho falasse. E eu entregaria todo o tempo de vida que me resta por isso. Quer dizer, todo não, reservaria meia hora por um dedinho de prosa sobre dinossauros, enquanto admiraria as estereotipias dele com as mãos - os gestos mais bonitos que tive a sorte de ver até hoje.
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Aline. Leio há um tempo o que você escreve. Também sou mãe atípica de um autista, de alto grau de suporte, não oralizado que hoje tem 19 anos. Conheci você através do Thiago Ranniery que foi meu professor na pós (em algum momento ele compartilhou algo que você escreveu e eu achei interessante e comecei a te seguir... isso foi bem antes do diagnóstico do seu filho... falo isso só para te dizer que me identifico muito com alguns posicionamentos seus de mãe atípica que também são políticos). Meu filho só começou a se comunicar aos 12 anos e através da escrita. Quando isso aconteceu, percebi que todo o tempo e trabalho investido desde os 3 anos dele valeram muito a pena. Ele foi armazenando muita coisa, da maneira dele - e que era muito, mas muiiito melhor do que eu poderia conceber. Ainda assim, até hoje, comunicar é um trabalho de muita insistência. Mas o fato da gente conseguir conversar através da escrita dele já foi um salto e tanto. Também fazemos CAA para a comunicação rotineira. Confia, confia e confia.
No geral as pessoas gostam muito das “boas mães atípicas”, no sentido de conseguir achar sentido, propósito, crescimento nas adversidades que o autismo traz. Todas estão tentando fazer o seu melhor, mas sinto quase um “ alívio cristão” quando as pessoas exaltam essa visão, e nunca é por empatia real, é por manter de uma certa forma as mães conformadas e no seu papel de doar tudo sem reclamar, sem precisar de rede de apoio, sem política pública.