Cursos livres online foram, durante um ano ou mais, uma complementação de renda importante na minha casa. É possível que, com o fim do pós-doc, voltem a ser. Veremos.
Muitas coisas boas saíram desses cursos. Amizades, trocas, gente de tudo que é lugar e jeito (já que não ter grana nunca foi problema para participar… quem viveu, sabe!).
Algumas das passagens desses cursos são inesquecíveis. Uma delas, protagonizada pelo meu querido Leomir Hilário, aconteceu quando discutimos a Psicopolítica do Byung-Chul Han.
Leo comparou nossa subjetividade, ou nossa psique, com os campos de exploração de petróleo na virada do século XIX para o XX. Ao ouvir essa comparação, minha mente retomou em alta velocidade várias cenas do filme There will be blood (em português, em mais uma péssima tradução de títulos, Sangue Negro).
A ideia de que há alguém perfurando nossos cérebros, cavando nossas emoções, sugando nossa imaginação e fazendo muito dinheiro com isso fez todo sentido para mim. Inclusive, a parte da exploração que é a perfuração de um poço que nunca se sabe exatamente onde vai dar ou no que vai dar. A história da exploração do petróleo é também a história de muitas mortes, mais ou menos acidentais, de muitas mutilações e deficiências provocadas pela perfuração e seus métodos (no filme, o filho do explorador fica surdo), de muitos investimentos sem retorno e consequentes bancarrotas, de muitos roubos, de muita desgraça, antes mesmo de chegarmos à discussão atual sobre a emergência climática e o antropoceno.
Como eu passei a usar, de fato, o Instagram só com a chegada do meu filho - durante a pandemia foi a única forma de dar notícias dele para muita gente querida que não podia nos visitar - as minhas conexões lá são muito marcadas pelas temáticas da maternidade, maternidade solo e, com o tempo, também pelo autismo. E embora eu não tenha chegado com a inocência de uma simples camponesa, pois eu estou nessa vida de redes sociais desde o IRC e do ICQ, foi a primeira vez que a combinação de uma temática com o movimento da rede causou em mim a sensação de ser um vasto campo de petróleo em frenética exploração.
É claro que independente de eu sentir isso no Instagram, a perfuração dos poços em mim já acontecia, mas eu diria que tudo se passava de maneira quase indolor. A encruzilhada redes + autismo + maternidade é que me des-anestesiou, digamos assim.
Gente, é inacreditável o que acontece no Instagram em relação ao autismo e não estou falando das óbvias picaretagens, não. Estas excluídas, ainda sobra um monte de draga e dinamite. Se eu ficar só com os perfis que não são golpe, de pessoas e profissionais que estão falando sério e se levam a sério, ainda é muito dolorido. É uma terra arrasada por muita gente que fala de/pela ciência (o que quer que entendam por isso) e, conscientemente ou não, estão apenas explorando um novo modelo de negócios.
Às falas vulgares e rasas correspondem a um bombardeio à crítica, ao pensamento inteligente, ao questionamento necessário. Feita essa primeira limpeza do campo, vem a perfuração propriamente dita, pela repetição e insistência dos critérios diagnósticos do DSM, lidos sempre a partir de uma perspectiva instagramável; com a proliferação de discursos terapêuticos que estão ali coladinhos à uma lógica manicomial (as clínicas com “todas as terapias” em que os pais deixam os filhos autistas durante um turno inteiro ou mais estão no topo das minhas irritações); e cada mínimo detalhe do comportamento transformado num transtorno, mesmo quando - e sobretudo quando! - o chamado transtorno mais me parece uma revolta dos corpos e mentes contra coisas que assimilamos para sobreviver, mas são sofridas.
O exemplo que me vem à mente agora é o Transtorno de Processamento Sensorial (TPS), que faz parte do quadro diagnóstico do meu filho e sempre me provoca a pensar como diabos é que a gente passou a processar tanto estímulo e poluição, de todos os tipos, de maneira considerada saudável, ao ponto de patologizar os funcionamentos disruptivos. Estranho é que estejamos absorvendo tanta porcaria e permaneçamos sensorialmente funcionais, não?
Enfim, o que me motivou a escrever esse texto, na verdade, foi uma conversa com uma médica e amiga sobre os planos de saúde e como andam as lutas em defesa do SUS. Em certo momento do papo, falei para ela que, pelo menos no campo do autismo, eu não tenho muita esperança de vivenciar um cenário menos desconfortável no SUS porque claramente há uma disputa sangrenta de concepções sobre o transtorno e seus tratamentos.
De um lado tem a turma que vende curso de terapia ABA entrando com o pé na porta na proposição de políticas públicas (onde, não por acaso, busca-se garantir que os profissionais do setor público tenham formação em ABA…) e, de outro, tem a galera que acha que autismo não existe, ou que os modelos de atendimento no setor público de saúde e educação podem dar conta das necessidades dos autistas, o que é tão enviesado quanto a visão de seus antagonistas.
A gente que tem - e sofre - com um diagnóstico de TEA próprio ou na família - e daí porque lembrei da comparação de Leo com o petróleo - somos um dos novos campos (existem outros, assim como petróleo pode ser explorado em terra ou no mar) dessa tão lucrativa quanto devastadora exploração da saúde mental.
E, não, sofrer não é uma escolha, como se diz no mundo coach. Não é simplesmente uma questão de “aceitação” como dizem os defensores do autismo enquanto identidade. Meu filho está no mundo, ele vai à escola, ele frequenta festinhas de aniversário, ele anda de uber comigo. O fato de ele não falar, para dar só um exemplo, deixa-o muito mais vulnerável a violências, reais, palpáveis e muito dolorosas.
Ao mesmo tempo, não tem uma semana em que eu não me pergunte se todas as tecnologias terapêuticas hoje articuladas no nosso cotidiano não são apenas uma nova forma política de submissão patriarcal carimbada com CID, DSM, etc.
Porque, a vida da mãe acaba, vocês sabem disso, certo? Pode ser que algumas de nós comecemos uma nova vida a partir do diagnóstico dos nossos filhos e isso dê muito certo (não vou citar nomes, mas uma galera ganhou dinheiro e relevância a partir daí), mas a imensa maioria vai se recolher à família, ao cuidado, à função materna, da qual ensaiávamos nos livrar até bem pouco tempo atrás graças às lutas feministas.
Bom, vou lá, galera, fico devendo mais uma vez a sistematização dos textos que estou lendo. Uma hora sai.
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Me sinto sem lugar nesse mundo autista instagramavel (sigo quase nada, comecei a te seguir pela criminologia), vejo muito mais sentido em algumas experiências no exterior que não estão afundadas em terapia de reabilitação (uma corrida contra o tempo que me adoeceu), mas tb não caem nessa de a escola regular com AEE vai dar conta de todos. Meu filho de 15 anos está fora da escola e não conheço qualquer instituição (regular ou especial) que faça sentido às necessidades atuais e futuras dele... nisso, vou fazendo o possível, me anulando muito para equilibrar os desejos e frustrações vividas por aqui.
Aline, seu texto me emocionou muito. Quando vc fala em "saúde mental", penso muito no paradoxo que é um homem branco hétero classe média como eu, que cresceu achando que o mundo era todo meu, tendo que lidar diariamente com uma auto anulação para viver em função do filho atípico. Juro que não me acho herói e sei que não faço mais que minha obrigação de pai, mas não é fácil lidar com o sacrifício pessoal e profissional de coisas que eu poderia estar fazendo e não faço pelo meu filho. E lógico, tudo temperado com muita culpa. Obrigado por tocar nesses assuntos.