Escrever é bom, mas ser lida é melhor. Afinal, ser lida informa que o prazer da escrita eu já tenho.
E, vejam, não sou escritora.
Se falo de alguém que me lê, é quase certeza que essa pessoa seja uma amiga, alguém que nutre a meu respeito um sentimento bom - e recíproco - independente do que eu escrevo. É uma maneira muito bonita de se fazer presente.
Seria bom que algumas pessoas, inclusive publicadas por grandes editoras, soubessem que o mesmo se passa com elas, independente da bajulação da crítica literária chapa branca. Significa que elas têm amigas; qualidade literária tem o Itamar Vieira, independente da editora que o publica.
Então, o mais acertado seria dizer: escrever é bom, mas saber que minhas amigas me leem é muito melhor. Foi o que senti quando Luane me enviou mensagem esses dias.
Ela assistiu a uma série e lembrou de um texto meu sobre o autismo e as subdivisões por nível de suporte feitas no DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).
Quem assiste a uma série e lembra de algo que eu escrevi sobre o DSM-V? Luane não é autista, nem mãe de autista. Ela não é fonoaudióloga, psicóloga, acompanhante terapêutica, professora do ensino infantil. Luane me lê e presta atenção - presta tanta atenção ao ponto de lembrar de algo muito específico que não toca diretamente a vida dela - porque é minha amiga.
Que bom é ter amigas. Que bom é ter Luane. Que bom é ter Sônia, que de tanto me ler e à Luane, achou que seríamos amigas e faríamos bem uma a outra. Como se tivesse nascido em cidades de muitos mangues, como Luane e eu, Sônia nos atou, as três, numa corda de caranguejo.
Esse texto de hoje existe porque Luane e Sônia existem antes e depois dele.
A série que fez Luane lembrar dos meus escritos foi Uma advogada extraordinária.
Caso decida continuar a leitura, haverá spoilers.
A princípio, não há nada de extraordinário em alguém lembrar de mim, ou do que eu escrevo, a partir de uma série cuja personagem principal é autista. Também não há grandes surpresas narrativas nesse drama coreano que aplica a fórmula da pessoa autista ultra-mega-super-inteligente, mas com graves problemas sensoriais e de socialização. Só que não foi nada disso que fez Luane me escrever.
No episódio “This is Pengsoo”, a advogada autista Woo Young-woo, personagem central da trama - que podemos deduzir ter superdotação e/ou altas habilidades - fica responsável por um caso de suposto homicídio que tem como suspeito um rapaz autista com deficiência intelectual grave, ou seja, o oposto dela no tal do espectro.
Quem me lê há mais tempo sabe que a agregação de superdotados e deficientes intelectuais graves sob o mesmo diagnóstico (e tudo que fica entre esses polos) é uma das coisas que mais me incomodam no DSM-V. Para mim, a ideia de espectro mais atrapalha do que ajuda pessoas autistas de maior suporte e suas famílias. Digo isso porque entre as pessoas que possuem diagnóstico de autismo nível 1 de suporte e as que se situam nos níveis 2 e 3 há um abismo de condições de existência que me faz defender a separação de categorias diagnósticas.
O pessoal nível 1 de suporte, com frequência, adere ao discurso da neurodiversidade. E esse discurso faz sentido quando se pensa em autista nível 1. São pessoas pensam e sentem o mundo de uma forma muito diferente, mas que conseguem habitar esse mundo sem precisar que outro ser humano vire sua sombra funcional. Eu compreendo, sem dificuldades, que essas pessoas não se vejam como pessoas com deficiência.
A recíproca não é verdadeira. Há um movimento, pelo menos desde os anos 10, de autistas nível 1 de suporte - anteriormente diagnosticados com Síndrome de Asperger (carinhosamente autodenominados aspies) - que se recusa a compreender e reconhecer a existência de pessoas autistas às quais não se pode negar a condição de pessoa com deficiência. São pessoas que não falam ou quase não falam e não conseguem fazer sequer a própria higiene pessoal. Para estas, o discurso da neurodiversidade é desastroso, pois implica na imediata ou potencial supressão de serviços de saúde. Afinal, se não há a deficiência como condição médica, por que o SUS ou o plano de saúde deveriam cobrir tantos tratamentos e terapias?
As famílias de autistas nível 2 e 3 de suporte são acusadas pelos antigos aspies de não aceitarem seus filhos e filhas como são e buscarem nas terapias a cura da condição autista. Em primeiro lugar, é preciso que se diga que a ideia de cura pela terapia tem um prazo de validade nas famílias dos autistas de maior suporte. Não é possível se enganar para além dos 7 anos de idade (no meu caso, jamais foi necessário chegar perto dos 7 para saber).
Em seguida, quando eu leio, nos grupos dos quais faço parte, mães de autistas sindrômicos como meu filho relatando a quantidade de convulsões por dia, a quantidade de semanas de internação por mês, a quantidade de novos sintomas por ano, e as vejo procurando notícias de terapias gênicas de centenas de milhares de reais que suas famílias nem sonham em ter, sobe em mim uma raiva imensa de quem não cuida nem de planta e quer acusar uma mãe dessas de sonhar com a cura (seja lá o que ela entenda por isso).
Outro dia eu vi uma mãe falando que a filha, autista sindrômica, começou a ruminar. Não é figura de linguagem, estou falando de uma criança que força o alimento ingerido a voltar para a boca e fica mastigando. Nenhum médico soube dizer a essa mãe o que fazer. O conselho mais “prático” a que chegaram foi deixar a menina ruminar até ferir o estômago, até ela sentir dor: “aí ela para”. Em outro lugar do mundo, no mesmo dia, um menino de quase seis anos, ao ficar sem supervisão por 5 minutos, para que a mãe tomasse banho (de porta aberta, pronta para correr em caso de acidente) foi encontrado comendo as próprias fezes.
“Somos contra o modelo médico da deficiência”, eles dizem. A frase é bonita, mas a verdade é que, hoje, se não for pelo modelo médico, as mães do parágrafo anterior vão sucumbir e, com elas, seus filhos e filhas. Não é possível viver, nem mesmo sobreviver, se você tem que estar em alerta 7/7, não só durante um treinamento, como ocorre aos militares, mas toda a sua existência.
Para nós, familiares, sobretudo mães de autistas de alto grau de suporte, as terapias não são o sonho curativo, é tudo muito menos, muito muito menos. As terapias são uma possibilidade de ver nossos filhos se agredindo menos, e agredindo menos os outros, se não pelo resultado terapêutico, pelo tempo sob supervisão adequada. São também a possibilidade de vê-los correndo menos riscos, e podem ser, inclusive, um horário para fazermos pelo menos uma refeição por dia. Terapias são rede de cuidado, principalmente, para quem não tem nenhuma.
A ideia de espectro criou uma “comunidade autista” em que uma parte, a menor - como sempre, a menor, os 10% - desdenha, critica, zomba, e talvez até odeie, as pessoas - com destaque para as mães - sem as quais 90% da “comunidade” não sobrevive. Aliás, dizem que a função de Hans Asperger, entre nazistas, era separar os autistas não aptos a sobreviverem por conta própria…
Ah, a série. Perdoem tanta divagação... O autista com severa deficiência intelectual foi acusado de matar o próprio irmão, um talentoso jovem estudante de medicina. A defesa, claro, alegou a inimputabilidade do acusado, visivelmente em sofrimento com tanta gente, reunião, e os próprios pais em uma espécie de luto em dose dupla. Essa defesa, no entanto, é promovida pela advogada extraordinária, a quem o promotor o tempo inteiro se refere para negar que autistas sejam inimputáveis. Como concluiu minha querida Luane, o tipo de situação que poderia ser evitada se os diagnósticos fossem diferentes.
É exatamente isso, obrigada por me ouvir, Luane.
Os tais níveis de suporte dentro do espectro produzem ainda outras crueldades, como a ideia de que a migração do maior para o menor nível depende da vontade, do esforço, da persistência e da resiliência da família (também conhecida como mãe). Isso é algo que claramente não está colocado para muitos autistas nível 3 de suporte. Arrisco dizer que para a maioria.
Ainda na série, os pais enlutados pela morte de um filho e a iminente prisão do outro resistem à presença de Woo Young-woo como advogada do caso, tanto por causa da insistência do promotor na tese que levaria seu filho à cadeia, quanto pelo fato, dizem eles, de que jamais tinham conhecido uma pessoa autista com altas habilidades - naquele caso, super altas habilidades. Escorrego dos roteiristas aqui: não tem quem não conheça o modelo instagramável e seriável de autista (The Good Doctor é outra série que demonstra o porquê).
Os autistas como aquele acusado falsamente de homicídio na série (é, ele não matou o irmão, o rapaz se suicidou) - não verbal, com transtorno generalizado de processamento sensorial, com deficiência intelectual - é que as pessoas costumam não conhecer. Para além dos anos da primeira infância, quando ainda há escola, e quando na escola eles ainda são fofinhos, autistas nível 2 e 3 de suporte vão progressivamente sumindo dos espaços públicos, assim como suas mães.
A série compra o discurso “nenhum autista é igual ao outro”. Eu bocejo. Se nenhuma pessoa é igual à outra, por que autistas seriam? A função dessa frase, no entanto, é corroborar a ideia de espectro e validar todos os níveis de suporte. Já fui abordada raivosamente por achar essa frase, ao mesmo tempo, uma platitude e um desserviço. De novo, autistas nível 1 de suporte reclamam de serem “invalidados” o tempo todo. Minha proposta sempre foi que eles fiquem com o diagnóstico de autismo e os autistas nível 2 e 3 migrem para outra(s) classificação(es), principalmente quando os exames genéticos forem se popularizando e as condições sindrômicas forem sendo descobertas (e assumidas pelas famílias, porque ainda tem isso, há um tabu em assumi-las).
Esse ano, entrou em vigor a Classificação Internacional de Doenças - CID - em sua 11ª edição. A CID é assinada pela OMS, assim como o DSM é assinado pela Associação Americana de Psiquiatria. A maneira como os dois documentos leem o autismo é diferente. Na CID 11, temos agora:
6A02.0 – Transtorno do Espectro do Autismo sem Transtorno do Desenvolvimento Intelectual e com leve ou nenhum comprometimento da linguagem funcional.
6A02.1 – Transtorno do Espectro do Autismo com Transtorno do Desenvolvimento Intelectual e com leve ou nenhum comprometimento da linguagem funcional.
6A02.2 – Transtorno do Espectro do Autismo sem Transtorno do Desenvolvimento Intelectual e com linguagem funcional prejudicada.
6A02.3 – Transtorno do Espectro do Autismo com Transtorno do Desenvolvimento Intelectual e linguagem funcional prejudicada.
6A02.5 – Transtorno do Espectro do Autismo com Transtorno do Desenvolvimento Intelectual e ausência de linguagem funcional.
6A02.Y – Outro Transtorno do Espectro do Autismo especificado
6A02.Z – Transtorno do Espectro do Autismo, não especificado
Percebem o caos instalado pela insistência em manter todo mundo sob um mesmo diagnóstico? Mesmo que melhor do que a distribuição por níveis de suporte - invertendo etiologia e cuidado - tudo permanece muito tumultuado, agora, dependendo de uns 3 diagnósticos diferentes, mas agrupados: de autismo, de desenvolvimento intelectual e de fala.
Manter a ideia de espectro coloca umas contra as outras pessoas que poderiam estar solidárias umas às outras e não estão porque a vontade de falar em nome dos outros - e de todos - é maior do que a de cuidar da própria vida. Nesse ponto, a “comunidade” não é diferente de outros grupos sociais, há sempre alguém tentando falar pelos outros porque isso envolve uma coisinha chamada poder, em muitos casos ligada a outra coisinha chamada dinheiro.
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Sempre aprendo muito quando você escreve. No colégio onde trabalho, atendo pequenos grupos de estudantes em um núcleo (chama-se Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Específicas). Isso que você pontuou no post é gritante: algumas crianças/adolescentes precisam só de mais tempo, textos mais curtos, fontes maiores. Outras sequer conseguem fazer a própria higiene sozinhas. Eu como professora nunca entendi como essa noção de 'espectro' poderia funcionar para contemplar pessoas com potencialidades tão diferentes. Pelo que entendi, esses aspies militam para que o autismo não seja considerado uma deficiência, porque deficiência na cabeça deles é uma coisa ruim? Talvez eles não percebam que, para além de prejudicar famílias inteiras, não usar o termo 'deficiência' para conceituar o autismo, não vai fazer com que o estigma desapareça. Isso se faz com educação, é um processo contínuo. Enfim, obrigada por trazer esses temas e a nos ajudar a entender essas questões tão complexas. Beijo!
Escrever pode ser bom mas
poder ler um texto, profundo enquanto claro, com um gostinho de quero mais e, belo apesar do “phatos”, não tem preço.