Antes de ser mãe, eu li "O tribunal da quinta-feira"
O texto de hoje é sobre a pré-história da maternidade atípica
Quando eu li “O tribunal da quinta-feira”, eu nem me imaginava mãe e esse livro me marcou profundamente, menos pela sua qualidade do que pela minha experiência no momento da leitura.
Mas, pela ordem, vamos ao livro, muito resumidamente, já com a minha leitura embolada, porque aqui não trabalhamos com neutralidade.
É um livro sobre um homem, claro. Esse homem tem uma ex-esposa malvada, ressentida, que descobriu não só uma traição comum, vulgar, do marido com uma novinha, mas também que as intimidades do seu casamento e da traição eram compartilhadas de maneira jocosa, desprezível, desrespeitosa, com um terceiro, amigo do protagonista. Ao descobrir, ela espalhou para um grupo de emails com bastante gente. O problema da personagem não é ser má. Antes fosse uma grande e bem construída filha da puta. Mas, não é. O castigo - em breve vocês entenderão - que o escritor deu a ela foi ser uma personagem miserável, sem vida interior, como disse meu amigo Elvio Cotrim. Ela não tem história, nem conflitos. Ela é só uma corna e mais uma corna numa vingancinha boba. Ex-louca, ex-malvada, mas só malvadinha.
O protagonista é um pintudão, gostosão, bem-sucedido - não há vida inteligente que não perceba que é como o autor se vê - que começa a comer uma novinha e compartilha com o amigo, da mesma forma misógina e vulgar que fazia sobre a ex-mulher, os detalhes íntimos de sua conquista (afinal, comer e não contar para ninguém, é como não comer, não é mesmo?). Só que a novinha, diferente da ex-esposa, é o que chamamos hoje de pick me girl. E que, à época, eu apenas conseguia elaborar como uma fantasia do autor - comum aos homens de sua idade - mas que não era assumida no livro como fantasia, o que tornava a personagem simplesmente porca, mal traçada, a própria Peppa Pig (sim, eu venho buscando formas de me vingar dessa porca especialmente desgraçada, a maternidade é isso também). A novinha é uma jovem universitária que batia palmas para a misoginia do seu macho quarentão e o escolhia contra a caretice de um mundo que linchava e incompreendia a liberdade sexual do macho progressista...
Além disso, o livro ainda era sorofóbico, homofóbico, uma lástima, perdoem a falta de condições de seguir adiante. Eu vim aqui falar foi de mim.
Quando eu saí do livro, entrei num mundo invertido. À época, eu fazia parte de um grupo de facebook com centenas de pessoas e algumas características. Uma delas é que vários dos seus membros mais ativos e/ou importantes eram gaúchos(as), tal e qual o autor do livro. Então foi um bafáfá de elogios e lambeção de saco. Todo mundo gostou. O dono da livraria gostou, a crítica literária de sobrenome alemão? holandês? uma coisa dessas aí, adorou, os meros leitores às margens do Guaíba amaram. Para todos, o centro do livro era a grande discussão sobre a exposição, o linchamento virtual, etc. Sobre misoginia, nem um pio.
Mas vejam, omiti uma parte fundamental da história, a que, para mim, é mais difícil contar. O grupo existia e se organizou em defesa de um homem exposto na internet por seu comportamento misógino. A primeira pergunta que eu faria à autora desse texto caso não fosse eu mesma seria: e o que você estava fazendo ali?
Bem, eu fui parar nesse grupo porque dois amigos, um deles que eu chamava de irmão achou de bom tom me adicionar ao grupo. Porém, entrar é uma coisa e permanecer é outra. Tão logo eu entrei, eu fui “notada” pelo dono do grupo, a razão pela qual o grupo existia e, muito rapidamente, eu me tornei a namorada do dono e vesti a lamentável skin pick me, mesmo que já tivesse sido “escolhida”.
O amigo que me levou para esse grupo nunca jogou abertamente comigo, sempre falou de maneira cifrada sobre as coisas que sabia sobre o dono. Por outro lado, parte significativa da pessoas assumiu que eu sabia coisas que eu não sabia. Havia uma questão factual envolvida, mas que o tempo das redes não permite a gente se atentar e eu não vou ficar aqui explicando, vou apenas apresentar como constatação: eu não tinha twitter em 2014. Restava-me, então, acreditar em fragmentos do google para compreender uma história confusa, com muitas partes deletadas, com quase todos os meus amigos (e amigas!) formando fileira em defesa do meu namorado, e acima de tudo, acreditar no meu próprio namorado o que, convenhamos, se não acreditasse, não namoraria.
Eu li o “Tribunal da quinta-feira” já vivendo meu próprio relacionamento abusivo, mas não na fase de entender isso. Paradoxalmente, eu detestei o livro e compreendi a misoginia envolvida sem jamais ter ouvido falar de Vanessa Barbara, essa escritora maravilhosa que vim ler recentemente por causa da temática da maternidade.
Bom, eu demorei quase nada para passar de pick me à ex-louca, foi rápido o processo e ele não é apenas uma mentira contada sobre a ex. De fato, há um processo de enlouquecimento envolvido, porque o adoecimento psíquico é real. O episódio CPF, da Rádio Novelo, em que Vanessa conta sua história de relacionamento abusivo com um dos donos de uma das maiores editoras do país, abuso amparado, construído, respaldado, aplaudido, justificado por um grupo de 15 homens reunidos numa lista de email nomeada “Fotos Pós-Chernobyl” (tem ator, escritor, tradutor - é uma espécie de grupo ancestral de red pills, curiosamente de maioria gaúcha), fez com que eu recordasse vários momentos do meu próprio relacionamento (o que vem acontecendo com 9/10 mulheres que ouvem o episódio).
Mas não é sobre os meandros do relacionamento (dela ou meu) que vim escrever porque não tenho o talento da Vanessa, que aliás já tinha entregado tudo dessa história na forma de ficção no premiado “Operação Impensável'“ (Ed. Intrínseca) há mais de 10 anos.
Eu vim falar isso tudo para dizer que quando li o “Tribunal da quinta-feira”, diante de tanta gente dizendo que o livro era muito bom - e tanta gente que tem por profissão fazer crítica literária - eu fiz o de sempre e pensei “eu devo estar errada, vendo coisa onde não tem, implicando com bobagem”. O episódio CPF da Novelo, com a comovente, bem humorada, belíssima voz da Vanessa (contratem essa mulher para audiobooks e eu venderei até os porta retratos da casa para comprar e ouvir) me fez descobrir que o Tribunal, na verdade, foi uma resposta (eu chamo de backlash) ao livro “Operação Impensável”.
Vejam só! Que delicinha esse meu eterno retorno! Então, o livro que me causou extremo incômodo por sua misoginia, embora eu não conseguisse ler o que se passava na minha própria vida no momento, era realmente, além da narrativa, parte de um “chega pra lá” orquestrado por homenzinhos do mercado literário que afastou por quase 10 anos uma autora brilhante do nosso convívio por ela ter tido a audácia de relatar a si mesma?
Essa newsletter voltará à sua temática habitual na próxima edição.
Você ser a chacota de um monte de macho escroto, e depois vir a ser a personagem judiada de um livro do amigue, livro elogiado por aí por uma galera que sabia da história... Gente do céu. Se houver justiça que seja a Vanessa fazendo muito sucesso 🙏🙏🙏. Dos demais desejo que a vida esteja se encarregando a partir desse minuto.
seria maravilhoso que Vanessa batesse recorde de vendas dos livros.
estou aqui acompanhando essas notícias e com certeza vai vir mais coisas daí, nunca é um caso isolado. 15 homens e 1001 merdas. é só questão de tempo. vem a galope.
sou a favor da exposição, não necessariamente achincalhando a pessoa, mas é preciso que cada um passe suas vergonhas em público.
um beijo, Aline.