A minha proposta hoje é colocar uma provocação aos psicanalistas a respeito de um tipo de sujeito bem específico do mundo dos autismos e que será bem reconhecido por quem me lê e é do babado.
Eu me refiro ao autista nível 1 de suporte que ocupa alguma posição de poder, na sociedade civil ou no governo, com frequência um homem, jovem, branco, que antagoniza com movimentos de familiares e amigos de pessoas autistas de maior suporte nos debates sobre políticas públicas.
Captaram a imagem? Pois bem.
Genealogicamente, eu que sou foucaultiana, localizaria esse sujeito nos fóruns de aspies dos anos 10 na internet, lembram? Eram comunidades virtuais que reuniam pessoas diagnosticadas, à época, com Síndrome de Asperger, e que depois o DSM passou a considerar também como autistas. As principais características do habitante desses fóruns eram a inadequação social e a inteligência muito acima de média. Esse, aliás, é o perfil que, até hoje, molda a produção audiovisual de massas sobre o autismo.
Nos EUA, uma parte dessa comunidade passou a denunciar determinadas práticas terapêuticas, como a Applied Behavior Analysis (ABA), e a gente pode discutir isso em outro momento porque, de fato, a história da ABA tem momentos conhecidos de uso de práticas torturantes (isso não é negado por ninguém).
Mas eu quero voltar ao meu sujeito que, esqueci de dizer, é brasileiro, e que passou a replicar as denúncias nos moldes americanos, ainda que sua idade não coincida em nada com as práticas da ABA denunciadas nos EUA ou com o próprio desembarque da ABA no Brasil. Porém, detalhes. Vamos pressupor competência.
Esse sujeito, adulto, jovem, homem, branco, brasileiro, autista nível 1 de suporte, que ocupa um lugar de destaque no debate político, seja pela via da sociedade civil (associação, ONG, cooperativa, redes sociais), seja por ocupar cargo no governo, pode, sim, ter sido submetido a um tipo de terapia inadequada para ele na infância e isso ter produzido um trauma. Por que não? Até aí…
A questão que quero propor aos psicanalistas é se eles já observaram como esse sujeito antagoniza com os familiares de autistas de maior nível de suporte. Mais especificamente, se já observaram como ele antagoniza com as mães dos autistas de maior nível de suporte que defendem a ABA para os seus filhos.
Desculpem o meu latim, mas vocês encheram tanto o cu de Freud e Lacan para olhar a maneira como esse sujeito tenta a todo custo retirar as mães do debate político e se contentam com uma explicação de que isso é meramente uma disputa por lugar de fala? Ou vocês acreditam que alguém - o sujeito jovem, autista nível 1 de suporte, que não cuida de uma suculenta, homem, branco, bem empregado - é o guardião dos direitos humanos dos autistas nível 2 e 3 de suporte, e as mães são as violadoras desses direitos?
Olha, todo mundo sabe que muitos autistas nível 2 e 3 de suporte talvez nunca cheguem a ter linguagem expressiva suficiente para adentrarem a arena política com sua própria voz. A pessoa que for a(o) cuidador(a) mais direto(a) desse(a) autista nível 2 ou 3 vai se implicar num processo de tradução das necessidades de quem é cuidado. Logo, sem dúvida alguma, esse(a) cuidador(a) não só pode, mas deve estar presente na elaboração de políticas públicas para autistas, e será a melhor pessoa para falar sobre a situação específica de quem ele(a) cuida.
Tudo isso me parece que seria óbvio e ululante para o sujeito que estou propondo ser observado pelos psicanalistas se a maioria gritante, esmagadora e qualificada desses cuidadores não fossemos nós, as mães. Aí, quando a gente entra em cena, ninguém cala o chororô desse sujeito. Ele fica visivelmente descontrolado, diz que nossas organizações não têm legitimidade, sai aparelhando, tratorando, xingando. Se eu fosse psicanalista, diria que é sintomático tanto auê por causa de um punhado de mães na política, mas como eu não sou, apenas aguardo o dia de perguntar se a mãe desse sujeito - que, na verdade, são vários - está bem.
Esqueçam a ABA em si um pouco. Até mesmo porque toda a ciência e todo discurso tem seus baixos começos, inclusive, a psicanálise, e eu não seria nada original em acusá-la, se quisesse, de misoginia, porque muita gente já o fez e muito bem feito. Desviem o olhar, por alguns instantes, da abordagem que é o alvo da divergência, e prestem atenção a quem e como são endereçadas as acusações (não são críticas, urge retomarmos um sentido sério e potente à palavra crítica):
São mães controladoras. São mães torturadoras. São mães que não aceitam os filhos como eles são. São mães que querem mudar seus filhos. São mães que querem se ver livres dos filhos. São mães que querem internar os filhos.
Vocês, psicanalistas, que estão respaldando seus posicionamentos a partir da fala do sujeito autista nível 1 de suporte que ocupa lugar de poder (dirige movimento ou está no governo), provavelmente homem branco (mas aqui cabe variação), não estão mesmo vendo mais nada aí além de uma disputa por lugar de fala?
Esse sujeito que estou propondo analisar seria o primeiro caso da história da psicanálise a ser reconhecido como uma ilha isenta de mommy issues mesmo com tanta red flag? Como é que é isso? Já tentaram explicar deixando de lado a disputa com a abordagem behaviorista que vocês têm como prioridade e para a qual, claro, o discurso desse sujeito cai bem como uma luva?
Que textaço, Aline.
Aqui no meu campo de batalha, o TDAH, eu já vi tantos psicanalistas duvidando da existência do diagnóstico, minimizando os impactos do transtorno na vida do paciente e até consagrando fake news (como o Christian Dunker, que repercute em vídeo uma mentira afirmando que o psiquiatra que primeiro propôs a tipologia do transtorno depois se arrependeu e renegou a existência do TDAH) que não consigo mais levar esse campo de conhecimento a sério, pelo menos no universo da neuroatipia.
Colocação perfeita!!!! Obrigada por escrever!