“Se não existe”. Eu gostaria que vocês se concentrassem nessa afirmação. Quando especulamos o que poderia ter sido, estamos falando do que não foi e, principalmente, do que não é. Essa especulação pode ter muitas funções, acho que nem saberia dizer quantas e quais. Eu tenho usado muito para me referir a vida que eu perdi.
Antes de ontem foi dia dos professores e eu já estou suficientemente afastada das salas de aula para receber qualquer lembrança ou menção de ex-alunos. A chegada de Zé tornou a profissão impraticável. Ou seja, se eu não tivesse engravidado, estaria fazendo o que gosto até hoje. E, perdoem-me as pessoas mais sensíveis, não encontrei ainda na maternidade que eu exerço, algo que efetivamente eu goste de fazer (até porque 60% dela se passa em clínicas, ambulatórios, anamneses). Faço tudo por obrigação. E faço bem. Cresci filha única, ouvindo que meu destino seria cuidar dos meus pais quando envelhecessem. O peso da responsabilidade do cuidar moldou meu caráter e me fez uma boa cuidadora.
Eu acho também que fui uma boa professora, pior nos primeiros anos e melhor nos últimos, como se espera, afinal, a experiência ensina. Teria, certamente continuado lecionando, se fosse compatível com a vida de mãe solo de uma criança com autismo grave (obs.: eu não quero saber o que autistas nível 1 de suporte pensam sobre o adjetivo “grave”, mas, sim, eu o utilizo para diferenciar o que meu filho tem do que os autistas com PhD, autistas influenciadores digitais, etc, têm - não é a mesma coisa, foda-se o DSM).
Eventualmente, eu tenho a chance de voltar à sala de aula, mas é como convidada de algum professor(a) e, sinceramente, eu me sinto muito mal. Tenho recusado o máximo que posso (não posso recusar quando é pago, preciso da grana). Aliás, qualquer contato com o mundo acadêmico hoje é um lugar de dor. No lançamento do meu livro pelo CEPESUSP, isso ficou muito claro. Jamais imaginei que, um dia, ter Vera Malaguti elogiando um livro meu poderia doer tanto. Significa que, se eu não tivesse tido um filho com uma deficiência tão severa, aquele seria um encontro feliz.
Meus dias têm beirado o impossível. Zé supostamente teve uma otite, para a qual foi erroneamente passado um antibiótico, e ficou mais de uma semana em casa, sem escola e sem terapias. Vocês não têm noção do quanto ele regrediu em comportamento e aprendizagem. Agora, imaginem, ele tem apenas 5 anos, quantas viroses ainda virão? Entendem que, até nisso, somos muito diferentes das famílias típicas? Uma virose e, de repente, uma regressão brutal. Acho que já falei aqui sobre meu pessimismo em “comemorar as pequenas conquistas” porque, como o desenvolvimento não é linear, cada regressão joga no lixo meses, talvez, anos de quase nada, mas esse quase nada é tudo que a gente conseguiu juntar.
Na semana que vem, precisamente na quinta-feira, às 11h da manhã, haverá audiência de “conciliação” no processo que move contra mim o professor da UFRGS, Marcelo Träsel. Nunca falei aqui sobre o teor das acusações, mas vou dar spoiler sobre uma delas: sou acusada de calúnia após comentar que o episódio “CPF na Nota”, parte 2, da Rádio Novelo, relatou violência psicológica contra uma mulher. Segundo meu acusador, como o nome dele, entre outras, havia sido divulgado por terceiros, ao nomear “violência psicológica”, eu atribuí a ele um crime, logo, eu o teria caluniado. É claro que não faz sentido. Os nomes envolvidos na história narrada no podcast circulam há 14 anos, e toda vez que se discute o caso, alguém chama de violência psicológica, de forma que, a seguir esse raciocínio, a própria Rádio Novelo teria cometido calúnia. Mas eu não sou uma Moreira Salles, é mais fácil me processar. Também, se eu não fosse mãe atípica, teria mais energia para dobrar a aposta e chamar esse processo pelo nome que ele realmente tem.
Na semana que vem, eu voltarei à sala de aula por obrigação: estágio da licenciatura que estou tentando terminar. Se eu não fosse uma pessoa que faz as coisas de trás pra frente, primeiro, teria feito a licenciatura, depois, chegado a um doutorado. Fato é que estarei em sala com adolescentes, coisa que não faço desde que me virava em cursinho de idiomas dando aulas de inglês. O assunto é materialismo histórico, realmente minha praia, mas tudo na mesma semana, pisar numa sala de aula e pisar numa sala de audiência, depois de todos esses dias vendo meu filho se autoagredir, não dormir, perder habilidades, tem tudo para ser horrível. Pelo menos, horrível para mim. Tenho esse “dom” de “cumprir bem as tarefas” e ninguém perceber. Ou, se percebem, sinceramente, não ligam, porque se envolver é custoso. Eu sei. Tenho ex-amigas que sumiram da minha vida desde o chá de fraldas de Zé.
Percebam que esse texto não tem a menor coerência. Ele é sobre nada. Mas é que a
escreveu sobre dormir e não ter vontade de acordar e disse que isso é diferente de não ter vontade de levantar. Depois que eu li isso e me vi na primeira situação - quase todos os dias - achei melhor escrever sobre nada do que não escrever, do que guardar, do que dormir mais noites com menos vontade de acordar. Ainda mais sabendo o que me espera semana que vem.Esses dias eu fui ao shopping fazer alguma coisa que já não me recordo e ouvi uma mãe atípica dizer “eu fiz tratamento para engravidar, por que eu fui mexer no que estava quieto?”. Ouvi-la me fez chorar baixinho e aliviada. Eu não fiz tratamento, eu sequer estava tentando engravidar, mas não é raro pensar o que teria sido minha vida sem a maternidade atípica.
Se é o que poderia ter sido e não foi. Se é o que não é. Se não existe. Repito tudo isso porque acusar uma pessoa vulnerável por qualquer bobagem (como vocês podem ver acima) é fácil e, claro, quero me defender. Ou me explicar para mim mesma. Vale tudo. Enquanto o Se não existe, Zé existe. E é importante dizer que todos os meus “Se’s” são ideias e, como diria, provavelmente, a pior música dos Titãs, nenhuma ideia vale uma vida.
Independente das minhas fantasias sobre o que não foi e não é, Zé existe e tem me ensinado que o amor se relaciona com o que existe. Zé existe e o amor é possível porque ele existe. O que existe é tudo que importa, é tudo que se tem para amar. A maternidade é uma ideia, ela não existe. Zé existe e eu existo. É nele, por ele, com ele, que aprendo o amor, todos os dias. As dores sobre o que poderia ter sido - Se eu não fosse mãe, Se eu não fosse mãe atípica, Se eu tivesse condições de me sustentar na minha profissão enquanto cuido de Zé, Se eu pudesse viajar - são narcisismo, o pior dos professores em matéria de amor.
[Aliás, tem muito professor precisando aprender isso…].
Já somos 16 pessoas na leitura guiada de “Outra sintonia: a história do autismo”. Assinantes pagos da newsletter, se quiserem participar, basta mandar email para <linpjs@gmail.com> manifestando a vontade de estar junto. O primeiro encontro será dia 27, às 19:00.
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O sonho mesmo seria conseguir, além do valor da escola, um salário mínimo para a mãe, esta que vos fala, a autora do trabalho invisível e não remunerado que é maternar uma criança atípica, e das palavras tortas que vocês leem por aqui.
Por isso, em busca desse sonho, a NOVA META é 250 assinantes pagos. Obrigada desde já e vá desculpando a bagunça.



Suas palavras sempre me tocam. Obrigado pelo texto e mostrar as suas perspectivas.
Sei que ajuda pouco, mas sou grato pelos seus ensinamentos. Bom final de semana para você e o Zé.
torcendo por você frente ao que vem por aí esta semana.