Espaço. Planetas. Astronauta. Foguete.
Tema de aniversário manjadinho entre crianças. Eu aprendi a adotar o clichê e o manjado como dádivas ancestrais.
Existem bons motivos para que eles sejam tão solicitados e isso quem diz é a experiência acumulada de mães com tarefinhas que o mundo (os pais, inclusive) considera menores, como organizar o aniversário na escola.
Porém, como Zé é especial, tive que responder mil vezes:
- Ah, ele vai de astronauta?
- Não, de foguete.
Bom, primeiramente, obrigada tia Ana Letícia por ter achado a roupa de foguete na internet do jeito que Zé gosta - larga, regata, leve, engraçada. Deu tudo certo.
Obrigada a todas as tias que colaboraram para que existissem bolo, salgadinhos, um painel de astronauta e foguete, sacolinhas: tia Bruna, tia Andréa, tia Glícia, Tia Victória (você já foi chamada de tia, Vivi?), Tia Puri e Sofia (que eu me recuso a denominar tia porque ela é um bebê ainda…). Vocês são incríveis.
Zé fez 5 anos. Ele foi feliz na festinha, como, de resto, é uma criança feliz quase o tempo todo. É uma criança saudável também. Aos cinco anos, acho que é possível falar de um outro marco: ele já é visivelmente autista.
Estou aqui escolhendo as fotos que vou imprimir - porque a avó faz muita questão - e fico lembrando como, nos últimos meses, intensificou-se, na rua, sobretudo nos carros que chamo por aplicativo, a pergunta “ele é especial?”.
Eu sei. O movimento social das pessoas com deficiência (PcDs) não gosta dessa coisa de especial. Então, vocês que me leem fiquem cientes que o correto é chamar a pessoa com deficiência - física, cognitiva, sindrômica, adquirida, não importa - de pessoa com deficiência. No caso de Zé, pode ser também, simplesmente, autista.
A pergunta correta, então, seria: “ele é autista?”. Porém, vamos de parênteses.
É possível olhar para Zé e entender que ele é diferente das outras crianças de sua idade. Mas eu não tenho clareza se é possível cravar “autista” para fazer a pergunta. Existem muitas deficiências próximas ao autismo, transtornos do neurodesenvolvimento, às vezes, ainda não nomeados. Eu compreendo, portanto, quem não afirma “autista” em sua pergunta.
Outra coisa que eu compreendo é que, como todo movimento social, o das pessoas com deficiência rema contra a maré, logo, é uma minoria. Para a maioria da população, “deficiência” ainda é um nome feio. O eufemismo ou a condescendência forjaram o “especial” para substituir o que acham feio ou ofensivo.
Agora, eu vou dizer a vocês o seguinte: eu não corrijo ninguém na rua que pergunte se meu filho é especial. Primeiro, porque ele é, óbvio.
Mas falando sério, sério mesmo, é porque diferente do que acontece com outros aspectos das identidades das pessoas - pensem em todos os xingamentos para travestis, gays, negros, etc - o “especial” não chega - pelo menos até aqui nunca chegou - como um ataque.
Se eu estiver palestrando, escrevendo, ou mesmo fazendo postezinho em rede social, certamente, vou usar os termos corretos e demandar das pessoas que os utilizem.
Mas com o motorista de aplicativo? Porran… que preguiça! Vou ficar devendo essa…
- Ele é autista.
É minha resposta padrão, sempre com um sorriso (sempre que posso, porque tem dias e dias, confere?) para que a pessoa não se sinta corrigida ou constrangida.
Vejam, eu não sou daquelas que menospreza pessoas - que eu nem conheço, aliás - e assume, de cara, que elas não vão entender o que o movimento social coloca. O desfile da Paraíso do Tuiuti esse ano, no grupo especial das escolas de samba do Rio de Janeiro, colocou uma comunidade inteira para cantar um samba que dizia “Eu, travesti” com as pessoas batendo no peito, de amor, de orgulho, de alegria. Foi lindo e deixou muito claro que aqueles chamados genericamente de “povo” ou “povão” entendem tudo muito bem, basta disposição, inclusive, para ouvi-los.
Enfim, ao mesmo tempo que Zé perdeu a passabilidade infantil típica - ou seja, a condição de se confundir entre crianças típicas - a pergunta sobre ele ser especial, com absurda frequência, vem acompanhada de:
- O meu filho também é.
- O meu neto também é.
- A minha sobrinha também é.
Então, eu agradeço a mim mesma jamais ter corrigido um(a) motorista. A pessoa, assim como eu, já convive com tanta coisa sem resposta, tanta sobrecarga, tanta dúvida, que minha escolha é - como aprendi com as terapeutas ABA - dar o padrão “ele é autista”, mas sem meter um “não” nas fuças de quem está puxando a conversa, e muito menos dar uma palestrinha (eu apenas suponho, porque conheço meu rebanho acadêmico, a quantidade de palestrinhas que dão em motoristas de aplicativo. Tô fora!).
Além de serem poucos minutos de trajeto, se eu fizer isso, vou ficar falando e perdendo a chance de conhecer as histórias dessas pessoas. Prefiro ouvir. A minha história preferida permanece a do moço que depois de 9 meses de espera conseguiu as terapias que o filho precisava pelo SUS. Mas esse título de história preferida é empatado com o tio, também padrinho, de uma menina autista, e que está cursando psicologia porque ajuda a criar sobrinha e quer fazer ainda melhor.
Com que cara eu corrigiria esses motoristas?
Enfim, Zé é autista, Zé é uma pessoa com deficiência, Zé é especial.
Agora, Zé também é um foguete.
E mãe de foguete adora ficar quietinha ouvindo histórias de outros planetas, astros, estrelas e, claro, dinossauros, esses manjadinhos que também são motivo de muita festa por aí.
Feliz aniversário, Benjamin! Você é o amor da vida da “mamã”.
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Que delícia ler esse texto! Adorei a quebra de padrão do Zé—ser foguete, e não astronauta, é uma escolha maravilhosa. Surpreender-se é sempre um presente.
Também sou autista (de 38 anos) e tenho duas filhas autistas. E, para completar a conexão, tenho um hiperfoco em astronomia—foguetes, planetas, buracos negros… 🪐
Aliás, tenho até uma empresa chamada "Rocket Produtora Digital" 🚀.
Me identifiquei muito com a parte sobre "ser meio militante-chato". Entendo perfeitamente o que você falou e concordo, mas às vezes não consigo deixar pra lá. Semana passada, corrigi alguém que disse que uma pessoa "suspeita de ser autista" provavelmente era, pois "não era normal". Sei que, muitas vezes, as pessoas não falam por mal, mas eu ainda defendo que "é normal ser diferente".
Seus textos sempre me tocam. Às vezes, me sinto amigo do Zé, de tanto que você já compartilhou sobre ele. Obrigado por dividir esses momentos e essas reflexões conosco. Ah, e sempre adoro quando tem fotos! 😊
Espero que seu livro tenha muitas vendas.