Rain Man, o autismo em Hollywood
Em 1989, Dustin Hoffman ganhou seu segundo Oscar de melhor ator. O filme era Rain Man, a história de um autista adulto, institucionalizado desde criança e que se reencontra com o irmão mais novo, interpretado por Tom Cruise.
Eu acho difícil falar de spoiler de um filme de 1989, mas antes que apareça alguma benção dizendo “ainda não vi e você contou o final”, eu vou me ater a pequenas considerações sobre Rain Man e sua relação com a história do diagnóstico que chamamos, hoje, de TEA.
Rain Man não aconteceu por acaso. Durante o recente percurso do diagnóstico de autismo (sim, é ainda muito curto, recente, tanto em termos de acúmulo científico quanto em termos históricos), pais e mães de autistas norte-americanos se organizaram a partir de duas formas de tocar a vida muito… americanas.
A primeira foi a organização em torno de uma pauta para produzir pressão institucional (lobby). Essas famílias se organizaram para demandar no judiciário, fazer leis, produzir material informativo e, sobretudo, angariar recursos para patrocinar pesquisa científica. A segunda foi fazer esse lobby chegar à cultura pop e ao cinema. No caso em questão, fazer chegar a Hollywood. Afinal, o que não está em Hollywood não está no mundo.
Não lembro se há uma relação direta entre as organizações de familiares e o surgimento do filme, mas é inegável que Rain Man emergiu de um caldo político e cultural temperado por essas organizações, engrossado ao ponto de um ator da estirpe de Hoffman - anteriormente vencedor do Oscar por Kramer vs Kramer - assumir o papel título do filme.
O roteiro, aliás, baseou-se na vida de Kim Peek, um jovem que, até aquele momento, era diagnosticado como autista e savant (uma síndrome que causa déficits cognitivos ao mesmo tempo que produz habilidades extraordinárias de memória e cálculo). Tempos depois, descobriu-se que o autismo de Peek era secundário, ou seja, derivado, na verdade, da síndrome FG ou de Opitz-Kaveggia (síndrome genética ligada ao cromossomo X). Rain Man mudou a vida de Peek e, só por isso, o filme já teria valido um Oscar (isso na minha opinião, que acho os critérios do Oscar duvidosos desde que Fernanda Montenegro perdeu para Gwyneth Paltrow).
Aqui aproveito para lembrar os textos anteriores em que eu apontei a falta de precisão, até hoje existente, do diagnóstico de autismo. Na época de Peek, quando ainda nem era “espectro”, o problema já estava colocado: como o autismo é um diagnóstico clínico, ele vem primeiro na vida das pessoas, e só posteriormente, com exames genéticos e outros instrumentos diagnósticos, descobre-se que o “autismo” ali é “secundário”.
“Autismo secundário”, a meu ver, é uma forma que encontraram para não invalidar o primeiro diagnóstico de autismo. O que essa expressão informa, na real, é que a pessoa tem outra coisa - uma síndrome geneticamente localizável e nomeada - e o autismo ali é, digamos, um dos sintomas. Etiologicamente, não é autismo (a questão real hoje é saber se o que chamamos de autismo tem alguma etiologia).
Agora, imaginem dentro de algo que é um “espectro”, a quantidade de síndromes distintas que estão sendo tratadas, pensadas, e mobilizadas simplesmente como autismo. Apenas observar as diferenças entre autistas nível um e autistas nível dois e três de suporte já oferece pistas de que o atual diagnóstico é um grande guarda-chuva (isso tem ônus e bônus, mas eu estou mais convencida dos ônus).
Mas, voltando ao filme, o autismo fez uma grande estreia em Hollywood. Rain Man ainda levou os Oscars de melhor filme, melhor roteiro e melhor diretor. O filme traz a história comovente de dois irmãos se conhecendo. A cena em que Charlie (Tom Cruise; irmão típico) ensina Raymond (Dustin Hoffman; irmão atípico) a dançar é belíssima e, no conjunto da história, funciona como um grande contraponto ao processo de aprendizagem que, na verdade, ocorre em direção contrária: é a personagem de Cruise que está aprendendo muito com a neurodivergência do irmão mais velho.
Existem também momentos divertidos, no cassino, na estrada, no elevador. Porém, o que quero destacar aqui hoje são as questões ligadas às lutas políticas de familiares de autistas que Rain Man abordou. Destaco três dessas lutas: contra a institucionalização; contra a ideia de que autistas não se conectam emocionalmente com outras pessoas; contra a ideia de que autistas não aprendem e não se adaptam.
Durante o filme, a relação entre os irmãos mostra as adaptações que Charlie vai aprendendo a fazer para dar suporte a Raymond e também como o próprio Raymond vai se adaptando a novos lugares, pessoas e objetos. Esse aprender e ensinar, óbvio, só é possível porque esses irmãos estão também aprendendo a amar um ao outro.
De uma maneira bem sutil, o filme mostra quem são as grandes responsáveis pelos cuidados e pela proteção dos filhos contra a institucionalização - Raymond só foi internado quando sua mãe morreu. Para bom entendedor…
Há uma história de bastidores (quem assiste pela Amazon pode ler nos créditos das cenas) que Hoffman e os roteiristas divergiam quanto ao final do filme. A versão que prevaleceu foi a do ator por ser mais realista (e, claro, mais triste). Reassistindo Ray Man no último final de semana, acho que Hoffman acertou, não é possível tratar um processo de longa institucionalização com passes de mágica.
Muito antes de ser mãe de autista eu já era fã de Rain Man. Agora, que consigo perceber a sagacidade e delicadeza do filme com os debates da época, fiquei mais fã. É certo que ainda vou rever algumas vezes e, quem sabe, até escrever mais sobre ele.
Bom, acho que agora eu tenho que realmente ir estudar os textos que prometi até escrever de novo por aqui. Procrastinei, gente, foi mal. O motivo, acredito, foi justo. Enquanto eu estudo a história do autismo na psiquiatria, vão lá, tirem um tempinho e assistam Rain Man. Afinal, o que pode ser mais fofo do que um irmão mais novo chamar o outro de Rain Man porque não consegue pronunciar Raymond?
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