Escrevo agora porque me parece a única maneira de não sucumbir. Meu filho ter passado por sua primeira experiência de capacitismo explícito e individualmente dirigido a ele deslocou alguma coisa dentro de mim que ainda não consigo entender.
É um alheamento, um não saber por onde começar. É a perda do gosto pelas coisas que gosto. É sentir uma lentidão nos movimentos do corpo que não corresponde aos próprios movimentos. Eu me vejo de fora e em câmera lentíssima.
Após o ocorrido, participei de uma reunião horrorosa em que não só a violência contra Zé foi negada como outras foram sobrepostas. Acho que num intervalo de 2 horas nunca havia ouvido tantas vezes a palavra “pai”.
- O Pai de fulaninho é alguém muito…
- O Pai de fulaninho com certeza..
- O Pai é…
E antes que alguém pense que eu reagi, já apresento minha falência. Tenho tentado me convencer que não respondi à altura, não expus a sordidez desse chamado ao Pai numa reunião sobre a violência sofrida pelo meu filho, porque havia uma idosa muito frágil participando daquele momento. É verdade que a presença dos mais velhos me põe freios, acho que é o correto a ser fazer. Porém, tenho dúvidas se foi só isso que me deixou imóvel.
Aqui não falo do homem-indivíduo, do genitor que manda a pensão, mesmo insuficiente, em dia, não falo de homem como pessoa. A insistência na figura do Pai bateu em mim como uma insistência no meu desamparo que, sim, está aqui. Existe. Eu sei que está com cada um(a) de nós em alguma medida, mas existem os(as) mais e os(as) menos sorteades. E existem também as variações de momento. Ver-sentir-saber da violência contra um filho é um desamparo novo para mim e não há como negar que estou sozinha nessa.
Quando eu era criança e sofri bullying algumas vezes, a fúria do meu pai entrando nos lugares fazia tudo voltar ao lugar quase imediatamente. É claro que isso tem a ver com as minhas memórias de menina que vê no pai um grande herói, mas também com algo que só pude compreender muitos anos depois, inclusive, depois de sua morte: meu pai era um homem negro, pouco escolarizado, subalternizado, trabalhador precário, que sabia (lá do jeito dele) que determinados ambientes e situações montados para “soluções negociadas”, as tais “mesas redondas”, “reuniões de alinhamento”, “meios-termos” eram todos uma sofisticada engenhoca de violência de gente branca, delicadinha, bem nascida, leite-com-pêra, cínica, debochada e autoproclamada “autoridade no assunto”. Então, ele já chegava virado no raio, pouco ligando para o estereótipo de ignorante e bruto que se reforçaria sobre ele. Com isso, ele construiu, ou não deixou que o mundo destruísse totalmente, minha autoestima, minha segurança em me afirmar em ambientes hostis.
Eram bem umas 7 pessoas negando o ocorrido na minha cara. Fui bastante contundente à exceção da resposta sobre o Pai, que não dei. No final, pouco me parece que será feito, além de ficarem me bajulando por um tempo com umas caras de cachorros perdidos na mudança, como se fosse eu a dever a eles alguma empatia.
A violência contra um filho é algo diferente de tudo que já vivi e me trouxe alguma dissociação existencial. Uma inquietação que nada sossega e olha que eu abusei dos remédios. Procurei canalizar o acontecimento para algo positivo (eu, que odeio essa palavra, porque nada de realmente bom vem depois dela - falou “positivo” eu já sei que vem merda depois): comprei livrinhos sobre autismo e atualizei um card que tenho de Zé explicando para crianças quem ele é e um pouco das diferenças dele (obrigada Gerson, por sempre me socorrer nessas, eu que não desenho nada além de boneco palito).
Na dissociação que vivo agora, comprar os livros e fazer o card para as crianças me deixou ainda mais triste. Acho que pais e mães de crianças típicas não sabem o que é viver buscando maneiras de justificar a existência do seu filho no mundo. Mas é isso que eu faço o tempo todo. A maneira como conheço cada criança da sala de Zé, por nome e sobrenome e principais características, a maneira como converso com elas brevemente sempre que as encontro, é algo que não vejo famílias típicas fazendo e eu sei que talvez não fizesse se fosse como elas.
Eu vivo tentando fazer as pessoas gostarem de Zé ou saberem que precisam respeitá-lo porque isso não ocorre espontaneamente. Ele é uma criança que não faz propriamente amizades, afinal, nem fala. E eu fico correndo no desespero de suprir uma falta que já não sei se é minha ou dele.
Para completar o sentimento de desamparo, voluntariamente deixei o grupo de whatsapp das famílias que têm filhos autistas com mutação no gene DEAF1. Eu já tinha sacado que era um grupo de famílias direitosas, mas ocorreu bem mais rápido do que eu imaginava quando escrevi o texto sobre Trump e o autismo: começaram a circular trechos da fala do Kennedy Jr. e mães começaram a validar discurso anti-vacina. Estou falando do grupo de famílias brasileiras. Preparem-se que ano que vem vai ser o inferno. Eu já tive meu test drive nesse grupo. Não adiantou nada argumentar, inclusive, porque tem umas duas médicas no grupo validando, ainda que parcialmente, atrasar o calendário vacinal de irmãos mais novos de autistas para ver se, afinal, a criança não fica autista igual ao irmão mais velho.
AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!
Ah, sobre a formatura do ABC: acho que tudo se encaminha para que Zé não participe mesmo. Mas eu sinto uma dorzinha por isso, sim. Por mais que eu ache a maneira como tudo é feito excludente e cafona, fico com a sensação de que se meu filho fosse típico eu não teria essa dúvida.
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Essas rodinhas de gente "civilizada" fazendo gaslight é algo pavoroso pra mim, já fui vítima n vezes (principalmente em trabalhos). Sou autista e no meu caso me sinto tirada pra louca na maioria das vezes. Não publicito meu autismo na maioria dos lugares mas as pessoas conseguem perceber diferença e fragilidade sem que se precise dizer muito. É mais violento do que um tapa, do que um grito. Leio sempre seus textos, partilho do desespero existencial e acho que ele não vem igual pra todos mesmo...
"Viver buscando maneiras de justificar a existência do seu filho no mundo". Uma das coisas mais desesperadoras que já li. Um abraço.