Nas últimas 48 horas, confluências caudalosas inundaram meu corpo, minha vida, minha casa.
Quem me acompanha desde o Facebook, por volta de 2015 a 2018 mais ou menos, viu minha escrita se desdobrar por muitos temas, em especial de conjuntura, mas quase sempre amarrados por um fio condutor que foi o abolicionismo penal, a sociologia das prisões, a execução penal. Foi assim também que eu cheguei ao extinto Twitter e foi essa a mãe que Zé recebeu quando chegou ao mundo, em 10 de março de 2020.
Era pandemia e, logo após a licença-maternidade, eu reassumi, de maneira virtualizada, minhas turmas de direito penal e processo penal, porque a carreira docente era meu principal sustento há quase 10 anos.
Em 2021, defendi minha tese de doutorado - e sobre ela falei muito nas redes - que virou livro este ano, sob o título “Humanismo de mercado: etnografia de uma prisão privatizada”, pela editora Igrá Kniga. O pré-lançamento esgotou rapidamente 100 exemplares, e agora, no lançamento pela editora, conseguimos um preço bem razoável, como vocês podem ver no site.
A maternidade mudou minha vida, como acredito que mude de todas as mães, mas a grande bifurcação que me fez inventar essa newsletter não foi ter me tornado mãe. Foi o autismo. Ser mãe de Zé integrava um mundo, uma casa, uma Aline, onde eu era múltipla, e sair de cena, seja da docência, seja dos debates públicos sobre abolicionismo penal e prisões, não passava pela minha cabeça.
O que era múltiplo, no entanto, tornou-se cindido. É diferente ser muitas em uma só e ser uma só fragmentada em muitas. Fui do espelho aos estilhaços.
No dia seguinte ao lançamento do livro, o substack me avisou que entrei no Top 100 global na categoria Parenting. Comemorei, claro.
Porém, uma das minhas principais angústias - expressa nas redes sociais mais de uma vez - e que veio com o diagnóstico de autismo era exatamente esse: ter que me refazer enquanto “profissional do autismo”, aqui incluídas desde as mães que viram terapeutas até as que profissionalizam a maternidade de alguma forma em perfis do Instagram (minha menor rede, a que menos uso).
Aqui, outra diferença valiosa antes de seguir divagando: maternar sempre foi trabalho, ainda que não remunerado. Mas o que acontece com mãe atípicas como eu - e em menor grau com outras mães - é que se torna necessário, praticamente inevitável, fazer da maternidade atípica uma profissão. Com poucas oportunidades de manter horários e rotinas compatíveis com as dos empregos comuns, resta produzir conteúdo, material, e uma infinidade de infoprodutos que abarrotam feeds como o meu na rede de imagens.
Algumas vão virar influenciadoras digitais para falar sobre autismo quando antes eram, sei lá, contadoras. Outras vão escrever livros sobre autismo quando antes eram enfermeiras. As advogadas vão trabalhar com direito de pessoas com deficiência quando antes eram criminalistas. As médicas vão construir na sua área uma sub-especialidade para pessoas atípicas. É só olhar o caso da Andréa Werner, que trabalhava numa grande empresa, salvo engano, e virou deputada pela causa da inclusão.
Essas mudanças são bem-vindas para algumas. Certa vez, uma mãe de autista me disse que, para ela, trabalhar com o autismo foi ótimo porque antes tinha um emprego que não era grande coisa, nenhuma paixão, nenhuma vocação, como queiram chamar. Já ouvi várias vezes a Andréa dizer que ser mãe atípica mudou a vida dela para melhor; fez dela uma mulher da política e politizada. Fico feliz pela Andréa e por todas que encontram propósito depois do diagnóstico.
Mas não é meu caso e nunca escondi isso de ninguém. Receber a notícia de que sou uma bestseller na categoria Parenting do substack menos de 24 horas depois de ver meu livro lançado tem sabor agridoce. É claro que é legal ter muita gente me lendo quando a vida de mãe atípica me tornou socialmente inepta. Podem perguntar aos amigos aqui de Aracaju quem me viu pela última vez num bar ou restaurante ou… Eu nem existo fora daqui (aqui, no momento que escrevo, é a sala de espera de uma clínica; quase sempre é, mas às vezes é meu quarto escuro e silencioso depois que Zé dorme).
A minha solidão é significativamente amenizada por vocês (eu já disse obrigada?). O sentimento que me toma hoje é o de quem se tornou bestseller naquilo que faz de pior. Em que momento me tornei o Monk, de American Fiction? Não darei spoiler, a referência fica para a cinefilia on board.
A partir de uma escrita descompromissada, sem edição e sem cortes, sem rigor, e que, eu temo, desperte mais compaixão do que prazer, cá estou, sendo mais lida sobre maternidade atípica do que pelas temáticas que estudei com afinco por décadas - até porque minha produção sobre estas últimas hibernou desde o diagnóstico.
Tenho esperanças que o livro fruto do doutorado venda bem, mas reconheço os limites que o envolvem e atravessam. Para além da alegria que é ver um livro próprio existir no mundo, agora me vejo às voltas com questões como: escrever um texto sobre o livro ou para divulgação do livro; realizar lançamentos presenciais; realizar lançamentos virtuais etc. Eu que atualmente faço exercícios físicos em casa para não socializar nem minimamente - a fobia social da mãe atípica é real; o burnout também - e não consegui lançar nem o curso e nem a newsletter abolicionista, estou aqui rindo nervosamente das demandas do livro (Do livro? Finjam junto comigo que é isso mesmo).
Estaria eu preparada para revelar ao mundo que há uma defasagem entre a Aline que escreveu o livro e a Aline de hoje? Porque há. A Aline do livro está em um metaverso acadêmico, cheia de energia para debater, compartilhar pesquisa, socializar a partir da produção intelectual e a Aline da newsletter é um caracol levando a casa sobre as costas e matutando sobre desfralde, processamento sensorial e como é possível o setor de saúde privada operar quase inteiramente fora da lei e não acontecer nada?
Isso sem falar da Aline que trabalha para sustentar a casa porque o livro publicado e a newsletter não pagam as contas (Embora toda ajuda seja bem-vinda! Continuem assinando se puderem!). Não ter emprego fixo é trabalhar por dez; são muitas frentes de trabalho, muitos freelas, todos nessa lógica de filme que vi totalmente, entendi parcialmente e gostei minimamente. Cada trabalho sobre uma coisa distinta: educação, pena de multa, consultoria jurídica, consultoria acadêmica. E ainda é bom agradecer às amigas (quase sempre são ELAS que acreditam no meu trabalho… mais do que eu) e ao universo, porque sem esses trampos seria muito pior.
Bom, é isso. E não é nada disso. Obrigada a quem assina a Mãe de Zé e fez disso aqui um bestseller no substack. Tragam azamiga, ainda estou devendo uma live com café para falar mal do plano de saúde, do judiciário e de vocês-sabem-quem. Tornem esse espaço ainda mais de vocês: eu respondo a todes que comentam e mandam email. Se, por algum acaso, alguém viajou no tempo-espaço e assina essa newsletter classificada em Parenting, mas chegou aqui por causa da Aline abolicionista (e sente falta dela!), compre o livro “Humanismo de Mercado: etnografia de uma prisão privatizada”. Foi a Aline mesmo que escreveu, ela jura.
Lembrete: essa newsletter é e sempre será gratuita. Caso deseje voluntariamente fortalecer minha escrita, você pode assinar um plano de R$ 10,00 por mês; R$ 100,00 por ano, ou fazer pix, a qualquer momento, de qualquer valor, para 79981565384 (celular). A meta atual é atingir 180 inscritos pagantes. Hoje, são 175, o que dá exatos R$ 1.611,75 mensais. Dê preferência à assinatura via plataforma do substack caso pretenda contribuir regularmente para nos ajudar a atingir a meta. Obrigada.
Aline, nunca comentei, sou mais ou menos tímida, mas estou aqui pelo prazer. gosto das suas metáforas, elas dão muito a medida não só da maternidade, mas do espelho, dos estilhaços também. Acho que se amanhã você quisesse escrever sobre as girafas, ou sobre azeitonas nas empadas, todas as mulheres que te leem entenderiam na hora os motivos - ou porque o estilhaço parou láaaaaa debaixo da mesa?-, isso pq nós já estamos passadas na casca do alho de tanto precisarmos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, tudo e tal (feliz ou infelizmente).
Aline, fiquei muito comovida com sua frase “fui do espelho aos estilhaços”. Não pude deixar de lembrar do livro Niketche, da Paulina Chiziane, que constrói logo no início uma imagem assim. Eu sempre pensei nos estilhaços como as várias mulheres da história, mas a sua frase traz o estilhaço pra dentro de cada uma delas. Você escreve muito bem, parabéns!