Ontem eu passei a tarde numa clínica fazendo exames oftalmológicos. Meu desespero era terminar tudo até a hora de buscar Zé na escola, coisa que não aconteceu e minha saga foi: ligar para minha mãe e avisar que ela teria que ir buscá-lo > ligar para a vizinha e pedir que ela chamasse um carro de app, com ida e volta, para colocar minha mãe dentro > fazer o pix para a vizinha pagar o carro > avisar na escola e pedir que ajudassem minha mãe com a mochila, a criança, a espera do carro de app.
Quem não tem rede de apoio tem que rebolar. Mas eu fico sempre numa ressaca horrível ao me perceber nessa vulnerabilidade. Os exames envolveram dilatação de pupila e até fazer o pix para a vizinha foi desconfortável.
Mas eu estou colocando isso aqui só para lançar ao mundo e tirar o aperto do peito. Eu vim escrever sobre outra coisa.
Na sala de espera do consultório, antes da dilatação das pupilas, fiquei me alternando entre a leitura do Três camadas de noite, da Vanessa Bárbara, que não consigo engatar e simplesmente ler de uma vez porque me machuca em vários lugares (ontem mesmo, não passei dos vinte e poucos porcento do kindle por causa de um trecho em que a personagem compara seu filho, uma criança típica, com outra criança típica - morri por meia hora, no mínimo), e algumas leituras aqui do substack.
Como já contei a vocês, existe nessa plataforma um “chat dos bestsellers” que é aberto e controlado por uma equipe de sei lá o quê deles lá e inclui todo mundo com mais de 100 pagantes em suas newsletters. Eu nunca presto muita atenção no que se diz nesse chat porque é desanimador. Um monte de gente interagindo sobre como ganhar assinantes pagos ou transformar assinantes gratuitos em pagos. Já vi de tudo. Acho que o cúmulo da baixaria foi a pessoa que escreve todos os dias e divide seu conteúdo pago pela quantidade de posts que o leitor quer acessar: 5 textos custam X, 4 textos custam Y, 3 textos custam… Olha, só consigo pensar na autoestima de quem acredita que suas palavras valem tanto. Só pode ser coach.
Ontem, no entanto, eu estava numa sala de longa espera para exames, e quem já está na humilhação não perde tanto se mergulhar na baixaria. Lá fui eu ler o chat. Descobri uma criatura que tem um substack sobre como ganhar dinheiro no substack.
Como está em inglês e eu também não quero propagar essa radioatividade, vou contar só um trecho desse metasubstack. Segundo a autora, que tem um layout parecido com os das propagandas sobre ganhar dinheiro usando apenas seu celular, muito comuns no instagram, os assinantes gratuitos de uma newsletter - a maioria - precisam sentir o gap entre o que se oferece de graça e o conteúdo pago. Ou seja, para convencer uma parte do meu público gratuito - no Mãe de Zé algo na ordem de 90% das pessoas - a assinarem meu conteúdo por R$10,00 mensais, eu tenho que, pelo menos, passar a impressão de que existe algo muito diferente do conteúdo gratuito escondido atrás de um paywall.
Ora, ora, se não é o capitalismo dizendo pela caralhonésima vez que se deve produzir necessidade onde ela não existe! Qual a surpresa? Bem, nisso aí, nenhuma. Porém, eu devo admitir que sempre me espanta a capacidade de alguém vender uma “dica” desse naipe. Sim, o conteúdo da metanewsletter, do metasubstack, da criatura best seller, obviamente, é pago (não, eu não paguei, a criatura contou isso no chat, vocês me respeitem…). Enquanto isso, o volume I do Capital, está aí de graça.
“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão”.
Muitas coisas passam pela minha cabeça. A primeira é que nem se eu quisesse, eu poderia “aumentar o gap” entre o que falo gratuitamente e um eventual conteúdo pago. No “mundo do autismo”, na suposta “comunidade autista”, existem muitos problemas, mas falta de bom conteúdo gratuito não é um deles. Então, eu teria que vender alguma mentira perniciosa, promessa de tratamento ou cura, qualquer coisa que, se o direito penal não fosse seletivo, deveria me fazer ir presa, e não, ficar rica. Porque a real é essa, uma parte considerável das coisas que se vendem para autistas, profissionais, mas principalmente, para famílias com crianças como Zé, tem um pezinho no estelionato. E voltamos ao capitalismo…
A segunda é que entre os 90% de assinantes não pagos, eu tenho certeza que tem gente que gasta dinheiro com suplementos alimentares sem comprovação científica, meses de academia que não serão frequentados, produtos de beleza que não serão usados (principalmente, não serão usados até o fim), assim como canais de televisão que nunca serão assistidos. Elas não assinam a newsletter por R$10,00 porque não querem. Paciência.
É forçoso concluir que qualquer recompensa individualista, mesmo que imaginária, jamais realizável, é a chave para ganhar assinantes pagos. Eu tenho que oferecer algo que faça bem a quem paga, mesmo que seja só uma alucinação. Em termos mais “atuais”, eu tenho que fazer você sentir que está investindo em você mesmo, Sr. ou Sra. proprietário(a) de um capital humano (referência bibliográfica - Gary Becker, um neoliberal safado - pleonasmo consciente - ganhador do nobel de economia em 1992) . A simples ideia de colocar o seu dinheiro a favor de outra pessoa - o que bárbaros chamariam pelo palavrão de solidariedade - é gasto. E gastar é feio, investir é bonito.
Eu assino atualmente 2 newsletters, 1 canal no youtube e uma campanha fixa no apoia-se. Tudo junto dá exatos R$ 45,00. Cancelar qualquer um deles não resolve em nada minha vida, mas retira o suporte, a visibilidade, a solidariedade e o incentivo para que essas pessoas se sintam parte, importantes, queridas, vivas.
Eu tenho uma amiga, a Bruna, que formulou uma das frases que eu mais gosto: “se a gente que é pobre for esperar ter para ajudar, a gente não vai ajudar ninguém nunca”. Porque é isso, gente, ter mesmo a gente não tem, mas a gente inventa, torce, coloca água no feijão, desde tempos imemoriais. Há quem prefira, no entanto, não ajudar nunca, à espera de, com isso, ter mais. Yemanjá me livre. Ou pode ser Yeshua também. Foi livramento, eu tô aceitando.
Eu sou mãe e crio uma criança com deficiência. Esse trabalho não poderia ser só meu, mas é, e me afasta dos trabalhos que são reconhecidos como produtivos, embora criar Zé seja provavelmente meu trabalho mais produtivo. No futuro, quando eu não estiver mais aqui, talvez, meu filho precise da assistência social. Meu estômago se contorce só de imaginar que ele será considerado um gasto. Não por vergonha - vergonha de não ter, vergonha de sermos saqueados pelo capital todo dia, vergonha de pedir ajuda, vergonha da deficiência - isso não sinto e gostaria que ninguém em condição semelhante sentisse. A vergonha surge e transborda por compartilhar a condição humana com quem pensa que assistência social - uma forma, mas não a única, de solidariedade - é gasto, enquanto passa a vida justificando como investimento suas compras de plásticos e outros derivados de petróleo.
Ah, mas você fala isso para convencer as pessoas a assinarem sua newsletter.
Pode ser. Mas também serve se você trocar uma ida ao shopping por uma carona semanal a quem precisa estudar, trabalhar ou ir ao médico. Serve se você for agora apoiar a pré-venda do livro do seu vizinho, que é escritor independente, ao invés de comprar algum cacareco na shopee. Serve trocar a compra da milésima peça de roupa idêntica a que você já tem no guarda-roupa pelo pagamento acima do mínimo a quem trabalha para você, especialmente se exercer trabalho doméstico. Serve trocar a assinatura da Folha de S. Paulo ou do Estadão pela contribuição a Mangue Jornalismo ou a Paraíba Feminina.
Pode tanta coisa que não é possível mais a impotência de apenas empresariar a si mesmo.
família vende tudo
família vende tudo
um avô com muito uso
um limoeiro
um cachorro cego de um olho
família vende tudo
por bem pouco dinheiro
um sofá de três lugares
três molduras circulares
família vende tudo
um pai engravatado
depois desempregado
e uma mãe cada vez mais gorda
do seu lado
família vende tudo
um número de telefone
tantas vezes cortado
um carrinho de supermercado
família vende tudo
uma empregada batista
uma prima surrealista
uma ascendência italiana & golpista
família vende tudo
trinta carcaças de peru (do natal)
e a fitinha que amarraram no pé do júnior
no hospital
família vende tudo
as crianças se formaram
o pai faliu
deve grana para o banco do brasil
vai ser uma grande desova
a casa era do avô
mas o avô tá com o pé na cova
família vende tudo
então já viu
no fim dá quinhentos contos
pra cada um
o júnior vai reformar a piscina
o pai vai abrir um negócio escuso
e pagar a vila alpina
pro seu pai com muito uso
família vende tudo
preços abaixo do mercado
(Angélica Freitas, 2007)
Lembrete: essa newsletter é e sempre será gratuita. Caso deseje voluntariamente fortalecer minha escrita, você pode assinar um plano de R$ 10,00 por mês; R$ 100,00 por ano, ou fazer pix, a qualquer momento, de qualquer valor, para 79981565384 (celular). A meta atual é atingir 180 inscritos pagantes. Hoje, são 164, o que dá exatos R$ 1.510, 44 mensais. Dê preferência à assinatura via plataforma do substack caso pretenda contribuir regularmente para nos ajudar a atingir a meta. Obrigada.
“Ah, mas você fala isso para convencer as pessoas a assinarem sua newsletter.
Pode ser. Mas também serve se você trocar uma ida ao shopping por uma carona semanal a quem precisa estudar, trabalhar ou ir ao médico. Serve se você for agora apoiar a pré-venda do livro do seu vizinho, que é escritor independente, ao invés de comprar algum cacareco na shopee. Serve trocar a compra da milésima peça de roupa idêntica a que você já tem no guarda-roupa pelo pagamento acima do mínimo a quem trabalha para você, especialmente se exercer trabalho doméstico.”
Só a solidariedade entre nós gera alguma coisa que preste nesse mundo. Muitas vezes eu não tinha de onde tirar, mas tirei assim mesmo, especialmente porque sei de muitas pessoas que fizeram, fazem ou fariam o mesmo por mim. Não estou sozinha, não estamos.
Adorei muito esse texto. Espero que mais gente entre no grupo dos assinantes da news do Zé.
Adoro tanto te ler, como você escreve bem! Que raridade maravilhosa sua existência! Renovando meu apoio , tentando aqui pelo substack que acho super confuso mas se não consegui vou de Pix kkk obrigada por compartilhar sua inteligência intelectual e E emocional conosco . E força aí com os colírios e dilatações. Passo sempre por isso , te abraço daqui