Alguém aqui gosta de ter uma habilidade, ainda que não muito desenvolvida, e ouvir de outras pessoas que não tem, de forma alguma, essa habilidade? Acho que não, né? A gente gosta e precisa que as nossas pequenas vitórias sejam reconhecidas porque, de repente, elas só são pequenas vistas de fora. Dentro, são imensidão. Eu não escrevo com o talento da Natália Timerman (oi, Nat!), mas dizer que eu não escrevo nada seria injusto e uma tristeza para mim.
Eu sei que tecnicamente Benjamin é uma criança não verbal. Mas eu sei também que técnica não é tudo e que meu filho fala uma palavra. Uma única palavra. Uma palavra gigante, que me enche os olhos d’água e me faz acreditar no futuro, quando tudo ao redor insiste em dizer que não estamos bem.
Benjamin fala “mamã” ou, com menos frequência, “mamãe”.
Ele tem quatro anos, eu sei. Era tempo de conversar e dizer muitas frases, construir estruturas complexas e tudo mais que consta na lista dos marcos de desenvolvimento da linguagem.
Das primeiras palavras - ua (lua), aua (água), mamã (eu), ó (vó) e papa (genitor) - só “mamã” ficou. Eu não me sinto exatamente feliz por isso, mas tenho a sensação de que BenBen expressa algo muito verdadeiro: tudo pode ir, tudo pode partir a qualquer momento, menos a “mamã”. A “mamã” fica.
É muito comum que ele chame “mamã” em horas de aperto. Como se fosse uma palavra mágica. Algumas dessas horas são de raiva também, e eu fico na dúvida se ele me associa à raiva (afinal, todo mundo que me conhece sabe que não sou uma pessoa zen e ele já me viu com bastante raiva nesses 4 anos) ou se, para ele, eu sou um antídoto contra aquilo que o irrita. Provavelmente, as duas coisas devem se revezar, além dos momentos em que ele efetivamente está com raiva de mim. Tudo perfeitamente compreensível.
Fora “mamã” ou “mamãe”, Benjamin faz vários sons que eu adoro. O mais clássico é “gui gui gui gui gui”. Não sei o que quer dizer, mas em geral, ele está animado quando solta “gui gui gui gui gui”. Profissionais do autismo podem dizer que não significa nada e que isso não é fala. O mundo pode dizer que não significa nada e não é fala. Porém, eu sei que “gui gui gui gui gui” é Benjamin dizendo que está muito empolgado com alguma coisa, gostando de algo. Então, entre nós dois, é fala.
Há um tempo, iniciei a leitura de “Humano à sua maneira: um novo olhar sobre o autismo”, dos autores Barry Prizant e Tom Fields-Meyer. Diferente de “Outra sintonia”, que eu não conseguia parar, nesse livro eu cheguei até a página 128 e dei um tempo. Não é um problema do livro, é meu mesmo, porque se trata de uma escrita que não me atrai muito: a escrita dos profissionais do autismo (acho chata, repetitiva, falam com a gente a partir de um pressuposto de ignorância que me ofende; além de conterem muitas, mas muitas platitudes). No caso de “Humano à sua maneira”, no entanto, esses problemas são bem atenuados, tornando a leitura quase agradável. Por exemplo, eu sei que lerei inteiro, só que com intervalos para leituras melhores no meio. A parte que mais me ganhou no livro até aqui foi sobre as ecolalias, aquelas repetições de frases, palavras e até músicas ou trechos inteiros de filmes que alguns autistas falam e parecem, de fora, totalmente sem contexto. Os autores passam algumas páginas falando como tratar a ecolalia a partir da caracterização de “imitação sem sentido”, “small talk”, “video talk”, ou simplesmente de forma patologizante (“comportamento de autista”), é uma imensa bobagem neurotípica porque a ecolalia conta uma história.
“Numa tarde, Jeff, outro menino da sala, parecia menos cheio de energia do que o de costume, mas como ainda não se comunicava diretamente, não sabíamos por quê. Ele começou a se aproximar dos diversos adultos da sala, botar o rosto perto do rosto deles e fazer um ruído que ainda não conhecíamos: ‘Faiz-ahhh! Faiz-aah”. Quando dizia isso, abria bem a boca e estendia a mandíbula inferior para baixo num ‘aaah’ bem prolongado (…) Minha primeira impressão era a de que ele estava brincando com os sons (…) Quando Jeff repetiu o mesmo ‘Faiz-aaah!’ na manhã seguinte, a professora telefonou para a mãe dele. Ela nem mesmo precisou pensar muito no assunto para responder ‘Ah! Acho que ele está ficando resfriado…’ (…)
- E daí? - perguntou a professora.
- Quando acho que ele está ficando doente, peço que ele abra a boca e faça ‘aaah’ - respondeu a mãe” (pp. 60-61).
É claro que os pequenos sons de Ben não são exatamente ecolalias, até onde vai meu conhecimento. No entanto, assim como na história de Jeff, diante do “gui gui gui gui gui” do meu filho, eu posso adotar duas posturas, a de quem percebe esses sons como algo sem sentido e a de quem acredita e procura descobrir qual é a história que ele está me contando.
Desde muito cedo, intuitivamente, quando ele repete muito “gui gui gui gui gui”, eu tendo a repetir e dizer algo como “tá bom, você é o gui gui gui de mamãe” ou “vem cá, gui”, ao que ele atende sorrindo e é muito divertido.
Temos ainda os outros apelidos circulando entre nós: Zé (para quando está muito danado, sapeca, meio pilintrinha) e Maria do Bairro (para quando está muito dramático, ascendente em câncer). Mas todos esses fui eu que dei. “Gui gui gui ” ele mesmo criou. Acho justo, inclusive, se descobrirmos, como suspeita minha mãe, que é um apelido não para ele, mas para mim.
Então, gente, a real é que eu menti e minto toda vez que encaro com muita seriedade essa coisa de “autista não verbal”. Isso é válido, claro, nos laudos, nos processos judiciais, mas não precisa ser algo que define nossa comunicação. Gui Gui e eu, ou Benjamin e Gui Gui, transformou-se em uma maneira de chamarmos um ao outro. E isso basta.
Eita mentira que me emocionou!
hahah que delicia! Zé tem sorte de ter uma mãe como voce.