Não sei de vocês quem já ouviu falar de Beatriz Nascimento, um nome importantíssimo para o movimento negro no Brasil, e para mim, especialmente, porque acredito no dia em que Sergipe será lembrada por ser “a terra de Beatriz Nascimento” e, não, do escravagista Silvio Romero.
Beatriz nasceu em 17 de julho de 1942 em Aracaju e migrou com apenas 7 anos para o Rio de Janeiro, algo comum na história de famílias pobres nordestinas da época. E não só daquela época: minha avó migrou para São Paulo e voltou, minha mãe migrou para São Paulo e voltou, eu migrei para São Paulo e voltei. Uma história comum, embora dados recentes do IBGE estejam nos trazendo mudanças no padrão de migração.
Beatriz se formou historiadora e escreveu sobre quilombos, sobre a situação da mulher negra no mercado de trabalho, sobre o amor e tantas outras coisas. Ficou mais conhecida pela narração no documentário Orí (1989), dirigido por Raquel Gerber, que trata dos “movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, passando pela relação entre Brasil e África, tendo o quilombo como ideia central de um contínuo histórico e apresentando como fio condutor a história pessoal de Beatriz Nascimento”.
Beatriz morreu com apenas 52 anos, no Rio de Janeiro, assassinada por Antônio Jorge Amorim Miranda. A história da morte de Beatriz me acompanha há anos porque o motivo do crime se reflete na minha vida de muitas formas, embora as consequências, claro, sejam incomparáveis a que atingiu Beatriz. Aqui temos um marcador social incontornável, aliás, que é a raça. Eu sou branca, Beatriz era uma mulher negra.
Antônio era casado com Áurea, amiga de Beatriz. Áurea sofria violência doméstica constante nas mãos do companheiro e Beatriz a defendia e a aconselhava a deixar o marido. A defesa intransigente da amiga desgostou Antônio que, no dia 28 de abril de 1995, disparou 5 tiros contra Beatriz, causando sua morte.
A vida me ensinou, com mais intensidade nos últimos 5 anos, que defender mulheres em situação de violência é também se arriscar a ser violentada. Não é que eu não conhecesse a história de Beatriz Nascimento antes, mas ler é uma coisa e se tornar alvo é outra.
Jurema, nome falseado por motivos óbvios, é minha amiga. Eu a conheci no momento em que o relacionamento dela tinha terminado e o filho, fruto dessa mesma relação, tinha nascido. Como se diz por aí, tudo ao mesmo tempo agora. Foram muitas as violências cometidas pelo ex-companheiro contra Jurema no processo de separação, gravidez, nascimento da criança, puerpério. Em geral, violência psicológica e patrimonial. Todas as vezes que pude, saí em defesa da minha amiga.
Fui xingada, ameaçada, caçada em diferentes perfis nas redes sociais pelo ex-companheiro da minha amiga. Ele prometeu acabar com a minha vida, minha carreira, minha reputação (acho tão engraçada essa importância que os homens dão a tal reputação…). Eu fiz o que pude, mandei que ele procurasse a turma dele e não me enchesse os pacová. Xinguei de moleque. Bloqueei sequencialmente nas redes, enquanto ele mudava de perfil e/ou de número de telefone. Em algum momento, esse cara desencanou de mim, casou-se com outra mulher e acabou preso por violência cometida contra ela. É tudo que sei.
As memórias de Beatriz e Jurema estão muito fortes em mim hoje. Ontem, recebi a intimação para uma audiência em juízo criminal, onde um homem está me processando por injúria, calúnia e difamação.
A última vez que eu passei por algo parecido foi quando defendi publicamente a posse do primeiro professor negro e pesquisador de racismos no departamento de Direito da UFS. Um branco achou de bom tom pegar meu posicionamento público em defesa da aplicação correta da lei de cotas e fazer disso algo contra ele (Surpresa? Nenhuma). Felizmente, o inquérito não chegou a se tornar um processo penal e o professor foi nomeado na UFS, resultado que muito me alegra. No entanto, não posso esquecer que defendi meu doutorado durante a pandemia, com um filho ainda bebê no colo e sob a ameaça de um processo penal. Para mim, ficou muito claro que estar na condição de aliada na luta antirracista é colocar-se em risco. Porque antirracista no papel ou na “bio” (quase) todo mundo é.
O processo que devo enfrentar a partir de agora decorre da defesa pública e igualmente intransigente que fiz da escritora Vanessa Bárbara, após a publicação do episódio “CPF na nota” na rádio novelo. Os detalhes deste processo ainda não podem vir à tona porque estão sob um inexplicável sigilo, sem respaldo em qualquer dispositivo processual. Mas, uma vez em sigilo, tomarei aqui os devidos cuidados.
Um sujeito que eu jamais citei nas minha manifestações públicas em defesa de Vanessa entendeu que eu falava sobre ele (Surpresa? Nenhuma). Assim como as jornalistas Cris Fibe, Milly Lacombe, Marcela Donini, Bianca Santana, e as atrizes Maria Ribeiro e Christiane Tricerri, eu chamei o que aconteceu com Vanessa de violência. Algumas, chamaram de abuso. Mesmo sem citar nomes ou fatos (violência é um conceito, “gritou e bateu na mesa” é a descrição de um fato), o sujeito branco entendeu que eu o caluniei.
E não foi só isso.
Ele também entendeu que eu o difamei quando supostamente curti e compartilhei uma lista com nomes de vários homens, dentre os quais, um se parece com o nome dele, e de onde ele inferiu uma relação com o episódio “CPF na nota”. Inferiu, sim, porque eu mesma não disse nada. Mas a parte mais curiosa dessa acusação de difamação kafkiana é que o sujeito branco não está processando o homem, um advogado por sinal, que efetivamente publicou a lista (eu, no máximo, compartilhei, repito). Surpresa? Nenhuma. O alvo sou eu, uma mulher.
Aliás, não. O alvo não sou eu, uma mulher, “só” porque sou mulher etc. O alvo é a solidariedade, a lealdade, a admiração e a organização das mulheres e entre mulheres. O alvo é a autodefesa das mulheres. O alvo é a identificação que sentimos umas com as dores das outras porque são nossas dores também. O objetivo é nos retaliar até nos calarem. Backlash, diriam as sisters anglófonas.
Eu não vou dizer para vocês que não estou assustada com um processo criminal que pede minha condenação a anos de cadeia e mais uma indenização de, no mínimo, 10 salários mínimos, por ter defendido publicamente uma mulher - hoje, minha amiga - que todas as jornalistas e atrizes acima citadas consideraram ter sofrido violência(s) de vários matizes. Porém, de novo, qual a surpresa? Vocês respondem.
O medo é só um dos sentimentos que um processo criminal injusto me traz. Medo que decorre menos dos argumentos ruins do meu oponente e mais do sistema de justiça criminal, que eu conheço muito bem. Um homem branco, do sul, de classe média contra uma mulher branca, nordestina, sem renda fixa, cujo trabalho de cuidado com o filho deficiente arrastou para fora do mercado… Não estou exatamente em vantagem nessa configuração, não é mesmo? Fora isso, estou com raiva pela injustiça, cansada pela energia gasta com mais um achaque, sobrecarregada de sociedade patriarcal, em resumo.
Talvez, por tudo isso, eu passe a escrever menos e entenderei quem cancelar a assinatura paga. Sem entrega, sem mágoas. Eu preciso, agora, reunir forças para seguir adiante, continuar defendendo minhas amigas de ontem, de hoje e de amanhã, continuar lutando pelas mulheres ao meu redor e também pelas que não estão, continuar estudando sobre gênero, raça e classe e honrando o legado de Beatriz Nascimento.
Não responderei a perguntas sobre o processo em curso (mas darei notícias sobre ele quando for possível). Aqui, quem tiver que segurar minha mão o fará, ou melhor, continuará fazendo, porque quer. E também porque escolherá acreditar, primeiro, na palavra de uma mulher, ao contrário do que fomos todos e todas ensinados(as) a fazer.
Obrigada.
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Não é a solidariedade, a lealdade, a admiração e a organização das mulheres e entre mulheres que ele quer atacar? Pois já adianto que ele fracassou.
Torcendo pra que o sigilo seja derrubado e você possa falar o nome dele abertamente. É muita covardia o que estão fazendo com você. Conte comigo.