Eu disse que o próximo texto seria sobre mim e aqui estou.
Numa rápida conversa com a Cacau hoje, comentei que às vezes me perguntava se as pessoas acham que eu seleciono desgraça para contar e comover.
- Dr. Felipe mandou perguntar se a Sra. não vem fazer a cirurgia que falta.
- Felipe começou a aceitar promissória? Porque dinheiro ele sabe que eu não tenho…
Essa foi uma breve e divertida conversa na semana passada com a secretária do meu dentista pelo whatsapp.
Eu tenho 43 anos e 06 dentes a menos. Minto. São 04. Os dois anos de pós-doc me permitiram fazer 02 implantes. De resto, há uma coroa presa por um fio mágico sobre uma raiz fraturada, mas que eu considero perfeita porque está aqui na minha boca parecendo um dente normal, e um buraco enorme de três dentes faltantes no lado superior direito da boca. Eu mastigo, portanto, sempre do lado esquerdo.
Não lembro do meu pai com dentes (só com dentadura), ainda que eu tenha nascido antes de ele completar 30 anos. Minha mãe, um dia desses, enquanto eu arrumava Zé para ir à dentista dele me disse “nunca levei você porque não sabia que precisava”. Respirei fundo.
Minha infância foi pobre, atenuada pelo amparo da minha avó materna. A infância dos meus pais foi miserável, com breves períodos de suspiro, mas que jamais incluíram cuidados dentários que sempre foram - e continuam - caríssimos.
Conheci fio dental quando já era adolescente. Só adulta aprendi a incorporar à minha higiene. O resto é história.
Eu faço parte da desgraça de ter nascido pobre num país pobre. Acho que mais da metade de quem me lê não tem a dimensão do que é sentir uma dor de dente e segurar a dor no analgésico até não fazer mais efeito porque não tem como pagar um dentista. Eu sou desse povo que a Rosana Pinheiro-Machado descreveu tão bem em 2009 para o Intercept e só por uma brecha talhada na colher, como um preso cavando para fugir da cela, fui parar nos lugares onde conheci pessoalmente alguns de vocês, nas universidades, sobretudo.
Respirem tranquiles! Hoje em dia, isso não me acontece mais porque Felipe e sua esposa, Kizzs, meu casal de dentistas favorito, já entendeu todo meu histórico, inclusive financeiro, e sabem que eu pago, mesmo que seja de cinquenta em cinquenta reais. Assim, a clínica deles, super chique, sempre me recebe. Então, eles, e antes deles, Dr. Resende, pai de Felipe, mudaram minha vida para sempre. Essa dor, pelo menos, eu não passo mais há muito tempo.
Além dessa matéria da Rosana, uma outra, no finado El País Brasil, diz mais um pouco sobre meus encontros com a desgraça. Não deixem de ler “Os inaposentáveis” se quiserem entender de onde eu venho, o meu ódio ao Paulo Guedes e a minha obsessão com o INSS (periodicamente, eu entro no site e fico olhando as minhas possibilidades de aposentadoria, afinal, pago sem falta, em cima do salário mínimo, minha contribuição).
Meus pais estão descritos nesse universo que o El País traçou. Minha mãe sempre foi dona de casa e nunca contribuiu. Meu pai se envolveu numa relação familiar de trabalho complexa, com outros homens da família, na qual ele era empregado na hora da afirmação das masculinidades embranquecidas e autônomo na hora dos encargos sobre a folha de pagamento.
Inaposentável, morreu fazendo pequenas vendas pela internet mesmo depois de 2 acidentes vasculares cerebrais. Morreu na maca de um hospital público, morreu com a perna amputada por um quadro avançado de doenças crônicas que só amputam pernas de pobres. Morreu aos 65 anos, sem ver o neto já concebido nascer. Atualmente, seus restos mortais jazem em cova alugada.
Foi só na conversa com a Cacau - e quero que ela saiba disso, porque na hora acho que pareci alguém certa do que dizia, mas não estava - que organizei, de fato, a resposta à pergunta feita a mim mesma sobre o que as pessoas achavam, se eu selecionava desgraça para contar e comover.
Eu não seleciono desgraça. Essa é minha vida (esse é o meu mundo, como diria a campanha publicitária…). Eu conto o que tem para contar e eu conto também para elaborar sobre mim e me transformar em outra coisa que não a desgraça.
Agora eu sei que parte do meu sentimento sobre viver escrevendo desgraça tem a ver com o fato de que meus amigos da vida acadêmica, da vida cultural, universitária, cronicamente online, praticamente todes já nasceram com um plano de saúde e outro de aposentadoria (ou herança, o que dá quase no mesmo) e estão descobrindo por esse texto que não tem fio dental na cesta básica, ou ainda, que existem doutoras sem (todos) os dentes.
“No trem de volta, no domingo, tentei distrair meu filho para ele ficar quieto, os viajantes de primeira classe não gostam de barulho, nem de criança agitada. De repente, pensei estupefata: “agora sou mesmo uma burguesa” e “tarde demais”. Depois, ao longo do verão, enquanto esperava meu primeiro cargo de professora, pensei: “um dia terei que explicar todas essas coisas”. Ou seja, terei que escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se quebrou. Em seguida, comecei a escrever um romance cujo personagem principal era ele. No meio da narrativa, tive uma sensação de mal-estar. Só há pouco percebi que escrever o romance é impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa “cativante” ou “comovente”. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai, os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei.”
Ernaux, Annie. O lugar (Portuguese Edition) (pp. 11-12). Fósforo. Edição do Kindle.
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Não vejo desgraça no que vc escreve, vejo a realidade da grande maioria do povo brasileiro.
Vejo a cara de um Brasil que alguns querem varrer para debaixo do tapete e vender uma imagem diferente nas redes sociais.
Vc descreve com maestria a vida real, difícil , complicada de muitos que conheço e tem horas que gostaria muito de poder abraçar e dar um descanso.
É “florida” ser brasileiro que não tem herança ou uma rede de apoio mínima para viver.
Eu te entendo perfeitamente. Também nasci pobre morando em um barraco onde os vizinho tentavam colocar fogo com a gente dentro.Estou na mesma situação que você sobre meus dentes, três quebrados do lado direito e só posso comer do lado esquerdo. Há dois meses sentia tanta dor de dente que precisei pagar um plano dentário.Honw eu posso, embora não ajude muito, ao menos a dor de dente foi embora. Mas as coisas melhoram e a gente precisa sair desse lugar de desgraça.