Desde ontem minha mãe está apavorada. Ela não consegue dormir direito, não tem outro assunto, toma mais remédio que o necessário e tenta me enlouquecer mais do que é possível (acredito que possuo uma redoma de proteção).
Um short vermelho, não o único, nem de longe o mais caro, na verdade, um short que é parte do fardamento escolar de Benjamin sumiu. Pode estar na escola, pode estar entre um móvel e a parede, pode ter sido enterrado por filho 2 (Nino, gordo, o beagle), pode ter atravessado o guarda-roupa e ido parar em Nárnia.
- É só um short
Desde que essa peça de roupa de 40 cm (35? 30? Sou um horror com medidas) sumiu, eu já levei Zé à fono, já discuti com as psicólogas um atraso que temos na implementação da CAA (comunicação alternativa aumentativa)* na escola, já paguei mais contas do que gostaria de ter, já deixei Zé na escola, já militei um pouco, e estou aqui na sala de espera da endocrinologista para levar um esporro qualquer sobre o peso que não perdi.
Minha mãe está em casa desolada por causa do short. E essa é uma das coisas que sempre foi muito difícil na nossa relação. Para mim, isso é coisa de quem “não tem o que fazer”. Na minha cabeça, são muitas as batalhas para escolher a do short.
Ao mesmo tempo, o sofrimento dela com esse tipo de besteira é real. Por mais que eu seja conta e totalmente contra qualquer tipo de diagnóstico selvagem, já pensei mil vezes se minha mãe está apenas em seu lento caminho de senilidade ou se ela está no espectro. Porque a verdade é que não lembro de tê-la conhecido de outra forma.
Diagnóstico à parte, porque autismo é um conjunto de coisas, e não sei se ela preencheria todos os critérios, o fato de ter um filho autista (lá vai a maluca do Propósito; eu odeio as malucas do Propósito) talvez tenha sido um jeito de a vida me ensinar que a rigidez da minha mãe pode não ser a “burrice” ou “falta do que fazer” que sempre me envergonharam nela.
É, não é muito fácil escrever isso. Mas é real. Óbvio que minha mãe sempre teve muito o que fazer: foi uma criança atirada ao trabalho na cozinha de uma fazenda aos 9 anos de idade e dona de casa a vida inteira, cuidando dos irmãos, do marido, da filha, da própria mãe, da tia, dos sobrinhos. É só raiva e injustiça minha. Só desespero e senso de superioridade da filha doutora. É só um short para mim, que não me organizo enquanto sujeito a partir do espaço e da vida doméstica.
A rigidez cognitiva confundida com burrice está mais para burrice minha, agora que sei que isso existe e continuo, lá no fundo, ecoando “é só um short, deixa de burrice, escolhe uma batalha real”.
Eu sou, talvez, o oposto da rigidez. Eu faço e concluo 3948472939 mil coisas ao mesmo tempo, ou em sequência, nos dias bons (nos ruins, mal tomo banho). Sou pragmática, multitarefas, e se o capitalismo tivesse conquistado meu coração, estaria fazendo sucesso no mundo corporativo, provavelmente, com perfil no LinkedIn. Talvez, sem filho. Talvez, à beira do colapso, chegada a um burnout, mas bem vestida.
Mas o problema dela é o short. Ao mesmo tempo em que penso coisas terríveis, confessáveis mais pela escrita do que pela fala, mais num espaço de pequeno alcance do que de grande público, mais para um público simpático do que para um analista implacável, às vezes questiono se não há vantagem em viver num mundo tão simplificado.
O short vermelho ou Mitidieri vendendo a DESO (companhia de saneamento de Sergipe)? O short vermelho. O short vermelho ou assédio moral na universidade? O short vermelho. O short vermelho ou o custeio e gerenciamento da casa? O short vermelho.
O mais provável é que eu compre outro short e imediatamente achem o anterior, pois assim é minha sorte. Que seja. Minha reação será rir por 10 segundos e esquecer em seguida.
Eu tenho um filho autista e uma idosa que entra em parafuso com coisas como o sumiço de um short vermelho, sob minha responsabilidade. A iminência do fim do pós doc. A busca desenfreada por trabalho. A cirurgia de vesícula. O climatério. A ação revisional de alimentos.
O short vermelho. Que fuga incrível, que merda de vida, que mundo pequeno, que paz, que pena.
*Comunicação Alternativa Aumentativa = aquela comunicação por tablet, com figuras, palavras, e voz. Vocês podem ter um ótimo exemplo de utilização da CAA no Instagram, no perfil da carolsouza_autistando (o meu perfil preferido de autista nas redes).
Aline, tem saci na sua casa. Quem pegou o short foi o saci. Negocia com o intermediário dele, São Longuinho, e o short reaparece
(só conselhos práticos aqui)
Cronista ainda por cima. Amei o texto. Ah, a Carol tbm é meu perfil preferido! 🤩