Naquela mesa
Meu pai nunca leu um livro na vida, não gostava de estudar, e não completou o ensino médio.
Mas meu pai sabia se comunicar em libras porque tinha um amigo surdo e dedicou-se a aprender. Se nunca amou o conhecimento em si, conheceu pelo amor ao outro.
Meu pai gostava de crianças, mas se dava especialmente bem com adolescentes e jovens, o que eu sempre achei uma habilidade e tanto, pois sabemos que são insuportáveis por maioria de votos.
Usou essa habilidade para mediar conflitos, evitar surras, ajudar em peripécias que não deveria ter ajudado, mas também para proteger Mica.
Mica era um dos nossos muitos vizinhos naquele condomínio vertical apinhado de gente meio pobre ou pobre e meia. Mica tinha alguma deficiência que minha memória de menina não alcança, mas que fazia os moleques do condomínio zoarem ele.
Mas sempre e só até meu pai saber. Até ele chegar e botar moral. Até ele acalmar Mica e me ensinar que Mica era incapaz de machucar quem não mexesse com ele.
Quando meu pai faleceu, vocês sabem, eu estava chegando ao segundo trimestre da gravidez de Zé. A primeira coisa que saiu da minha boca foi “meu pai não vai conhecer o meu filho”.
Essa dor foi e vai ganhando colorações mais intensas a cada novo diagnóstico e prognóstico de Zé. Meu pai, diferente de mim, que vivi no mundo alheia a pessoas com deficiência até ter um filho com várias, sempre esteve atento para aprender com essas pessoas e ser apoio para elas.
Há dias em que me pego pensando o quanto a presença dele fortaleceria Zé, o quanto ele o amaria ainda mais e sempre a cada exame apontando uma limitação, o quanto, talvez, ele ignoraria todas as predições de incapacidade.
Quem sabe até, meu pai soasse um tantinho negacionista, transformando onomatopeias em palavras, sequências de sílabas em frases, balbucios indecifráveis em diálogos, para ao final, dizer “olha aí, fala perfeitamente”.
É, pai, se você estivesse aqui, já estaria dominando a comunicação alternativa, como fez com libras.
Hoje fomos a um aniversário de uns colegas de Ben. Foi num shopping, lugar que você mais odiava em toda cidade. Como trabalhei muito sexta à noite, sábado manhã e tarde, a última coisa que eu queria fazer era ir a um aniversário no shopping, mas me programei tão bem e fiz tudo tão certinho que os horários encaixaram e me senti uma boa mãe por levar meu filho para socializar e passear um pouco. Mas toda vez que isso me ocorre (não são muitas vezes), penso que eu seria uma mãe melhor se ainda tivesse você por aqui.
Lembrete: essa newsletter é e sempre será gratuita. Caso deseje voluntariamente fortalecer minha escrita, você pode assinar um plano de R$ 10,00 por mês; R$ 100,00 por ano ou fazer pix, a qualquer momento, de R$10,00 ou qualquer valor, para 79981565384 (celular).