Eu avisei.
Desde o começo, disse aqui que, em alguns momentos, fugiria do tema, igual quem zera a redação do ENEM.
É o que vou fazer agora, após uma conversa interessantíssima com um amigo que, desta vez, não será identificado.
Papo vai, papo vem, ora por ligação, ora por mensagem, consegui organizar na minha cabeça algo que sempre foi claramente sentido durante muitos anos.
Como toda trânsfuga de classe (olá, Bourdieu!; olá, Annie Ernaux!), eu habitei dois mundos com uma linha divisória bem definida: gestos, abordagens, temáticas, costumes, afetos, e claro, conforto material, evidentemente distintos. Isso daria uma tese, mas Omolu me defenda de passar por essa enfermidade de novo, ou um bom livro de ficção (que não seria exatamente ficcional), se Nanã me desse sabedoria e Oxum me desse a sedução.
Nada disso feito, vou escrever aqui mesmo.
Em um metaverso da minha experiência no mundo, o que as pessoas usufruíam materialmente correspondia, mais ou menos, ao que elas faziam da vida.
Uma amiga que passou num concurso para professora da rede estadual, depois de uns oito anos, sem filhos, doença própria ou na família, conseguiu financiar, em vinte anos, um apartamento numa bairro que um dia irá existir, mas que, no momento da compra, era só um canteiro de obras de uma mesma construtora, subindo prédios e mais prédios.
Um amigo trabalhador da cultura, que vive de apresentações artísticas e indicações de amigos para trabalhar em festas de bacanas, além de alguns editais locais de financiamento, passou dos 30 morando com os pais para, com isso, manter os dois filhos estudando numa escola privada que considerava um pouco melhor, ali mesmo no seu bairro.
Uma prima, jovem médica, assim que se formou, comprou um apartamento financiado num bairro periférico e, quando quitou, vendeu e deu como entrada em outro, aí sim, no bairro mais nobre da cidade, quando já possuía uns dois ou três empregos.
Agora, pula para o metaverso em que nada rima com nada, lé não faz cré.
Aos poucos fui conhecendo pessoas cujas ocupações, profissões, trabalhos declarados jamais - vou repetir, jamais - poderiam sustentar a vida que levavam.
Jovem artista, com poucas apresentações ainda, morando em apartamento alugado em bairro nobre que, fazendo bem as continhas e juntando com o valor estimado do condomínio… se fosse pobre, alguém diria logo que o dinheiro vinha do PCC.
Antropólogue recém formado, viajando pelo mundo, e não estou falando de ir abraçar a Mafalda na Argentina (não que eu já tenha ido, ok? Nunca saí do Brasil). Estou falando de cruzar o mundo, visitar o leste europeu, o oriente médio, a Índia. E eu juro por Xangô que o machado treme quando alguém fala de “mochilão” e trocar comida por hospedagem, porque só o seguro-saúde, só a garantia de que haveria como voltar em caso de uma merda colossal, já desfaz essa narrativa-pataquada.
Jornalista, também recém-formada(o), trabalhando para movimento social, impecavelmente vestida(o) e/ou maquiada(o) - mas fingindo naturalidade - eventualmente esquecendo roupa no meu apartamento, e eu quase infartando ao colocar na máquina e ver a etiqueta.
Mas não é bem sobre a diferença entre a ocupação e o padrão de vida que quero falar. Porque isso tem nome, todo mundo sabe, e podemos simplificar chamando de herança, seja de pai e mãe vivos ou mortos, porque aqui não é blog jurídico.
Não é isso. Bem queria eu ser herdeira.
Minha questão, hoje, mas que não é de hoje, é que tudo isso se dá entre sorrisos e silêncios.
- Oi, sou fulano, fotógrafo, me formei o ano passado na PUC, faço uns freelas para o MTST, e mês passado voltei da Alemanha com umas ideias incríveis…
Silêncio. Sorrisos. Todo mundo muito interessado na Alemanha, nas ideias.
Não que não fossem incríveis. E, talvez, o fato de a conta não fechar jamais não tenha sequer passado pela cabeça dos ouvintes porque todo mundo ali era meio assim. Então, vamos ao que é incrível. Conta é chato.
Talvez seja um acordo tácito, subliminar. Não sei porque eu não faço parte dele. Eu sempre notei, sempre me incomodei. Sempre fiquei com cara de tacho.
É óbvio, para quem acompanha essa news, que minha condição trânsfuga é mais cultural que material, porque continuo contando moedinhas, ainda mais depois do empobrecimento que a conjugação dos fatores mãe solo/filho com deficiência produz.
Vejam, não me causa mais espanto alguém que faz um trampo por ano e compra um apartamento à vista. Mas, depois da conversa com meu amigo, eu fiquei pensando como esse silêncio alimenta a ideia de meritocracia que todos - todas, todes - esses meus amigos, amigas, amigues, do metaverso 2, caso perguntados, rejeitarão de pronto (sim, eu os conheço… e amo, viu?).
Fiquei pensando como suas ideias podem ser mais incríveis sem o peso do tipo que eu carrego. Quem pensa em mim e pensa numa tese que ficou entre as quinze melhores do país? Claro que não. Eu sou mãe de um autista com newsletter de inscrição por R$10,00.
Até eu tenho dúvidas sobre tudo isso porque minha convivência no metaverso 2 me afetou. Quando penso nos amigos, amigas, amigues com projetos incríveis, tenho que racionalizar para tirar da primeira fila do cérebro os que o trabalho não se relaciona com as contas a pagar. Tenho que gerenciar minhas ideias para por a galera do hip hop de Sergipe à frente. Não estou isenta de nada.
Lembro muito da Ana Flauzina dizendo o quanto ficava irritada com todo mundo chamando o Rodrigo Hilbert de “homão da porra” - e não que ela o conhecesse e ele não fosse - mas que o rapaz do uber que pega às quatro da matina e encara jornada de 17h fosse só “precário”.
Na minha vivência, que ainda é e está por vir, o metaverso 1 é constitutivo: sou “batalhadora”, estou sempre “lutando”, sou “foda”, na medida em que sou batalhadora e estou lutando. Há uma diferença fundamental entre o que é incrível porque é refinado, até mesmo poderia dizer, belo (alta estética, por favor, falemos de maquiagem em outro momento), existe e produz no mundo sem se sujar ou deformar com a preocupação em pagar parcelas de um plano funerário para não precisar do auxílio funeral da prefeitura (muito específico, eu sei). E existe o incrível da “superação”, que é condescendente. Não são incríveis iguais.
Eu gosto do metaverso 2 porque é boa a proximidade com esse incrível que flutua. Eu amo muita gente do metaverso 2 e quero continuar amando. O problema é a ressaca. E ela aumenta com a idade, vocês sabem. Mas existem amores tranquilos e outros nem tanto. A gente vai levando.
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Muito bom!! também fico intrigada com o silêncio e quando penso e comento com amigas que compartilham do mesmo pensamento fico me questionando se é algum tipo de inveja, rancor ou despeito. Depois volto a pensar que é só consciência de classe mesmo.
um beijo, Aline.
Esse texto me lembrou muito a primeira conversa que tivemos antes de uma aula sua, sobre estudar pra tentar fazer essa fuga de classe. Eu também penso muito nessa vibe meritocrática e totalmente ilusória da gente considerar bem sucedido essa galera que você comentou sem levar em consideração a herança, que nem precisa ser só de dinheiro, mas tb de contatos, de lugares frequentados, de cultura adquirida pela família. Eu não tive nada disso e hoje trabalho com manutenção industrial pra conseguir escrever sobre direito e a vida no tempo livre. Também amo e admiro muita gente desse "metaverso", mas identificação é bem mais difícil encontrar...