Aconteceu de novo. Foi na semana passada. Alguns de vocês devem ter visto a notícia, outros, não.
Por motivos óbvios, o algoritmo me entregou diversas vezes o mesmo caso, com chamadas diferentes. O menino morto era autista. Quatro anos, a idade do meu filho.
Eu matei meu filho manda uma viatura para ele ter um enterro digino (sic)
A frase é da mãe. Ela realmente avisou na rede social. Mãe solo. Que surpresa…
Não citarei aqui nomes ou locais. Não sou da imprensa.
Matou o filho e postou no facebook.
Eu compreendo essa mãe. Compreendo a cadeia de pensamentos, sensações, problemas.
Compreendo como não gostaria de compreender.
Compreendo os raciocínios, os cálculos - precisos ou não -; as linhas - tortas ou não; as lógicas - borradas ou não.
O clássico beco sem saída: precisa trabalhar para o filho ter acesso a terapias, mas para levar o filho às terapias não consegue trabalhar.
Isso não é uma condição temporária. Essa é a sua vida agora.
Daí para frente é tudo para trás.
É desaparecer sem que ninguém perceba.
É saber que, ao morrer, só o mau cheiro alertará os vizinhos.
É ter plena noção de que você e seu filho só terão a ajuda que puderem pagar. Se puderem.
É fazer tudo com dor. Absolutamente tudo. Às vezes, com várias dores cruzadas: cabeça, coluna, barriga, alma, ombros, estômago, pernas, calcanhares, coração partido.
É olhar o filho alheio e se fechar no mundo dos atípicos para doer menos.
A vida de quem cuida de um autista tem um caráter espectral. Somos sombras.
Temos uma forma humana sem chegar a sê-lo.
Não temos rosto, olhar, desejo. A sombra só acompanha, presa a um corpo que já não é mais corpo, é suporte.
Matou o filho e postou no facebook.
Aposto meus livros que ela pensou como seria tirar a própria vida e poupar a do filho.
O manicômio como destino.
A rua como destino.
A falta de amor como destino (quem cuidaria de alguém que ‘dá tanto trabalho’? Nem o pai quis…).
Os maus tratos dos parentes que ficariam com o BPC como destino.
Um quartinho fétido na casa de um parente como destino.
O fim das terapias como destino.
A desescolarização como destino.
O confinamento como destino.
A morte em vida como destino.
[No livro Outra Sintonia, há a história de um pai de autista que, ao ver o filho chegar à adolescência e começar a se masturbar na rua, olhando as vizinhas da idade dele, matou o garoto. Foi condenado, como a mãe que postou no facebook será, porém, segundo o livro, pairou entre as famílias de autistas o silêncio e a compreensão dolorida de que falo aqui. Eles viviam nos EUA, o país do pânico moral contra ‘predadores sexuais’. Aquele pai sabia que seu filho teria o linchamento como destino. A lobotomia como destino. A prisão-manicômio como destino].
Quem está onde eu estou e vê as coisas de onde eu vejo já não se pergunta por que essa mãe fez o que fez.
A minha questão é como uma mãe chega à conclusão que a morte é a melhor coisa que ela pode fazer pelo seu filho? Como e o quê a fez concluir que a dignidade da criança só seria possível com um enterro?
Tateio respostas que levam, sem exceção, a duas pessoas destituídas de toda humanidade, bem antes, e várias vezes, do ato final.
A mãe foi presa em flagrante. O delegado disse que a achou muito apática.
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Pessoal, alguém com o Nick "Pasquale", apareceu aqui com a típica postura hater de um incell. Tomem cuidado. Bloqueei e recomendo o mesmo.
Que porrada. Sobre o destino, parece que as palavras saíram de mim, poucas vezes um texto me traduziu tanto. Sim, é muito doloroso compreender a atitude dessa mãe.