Entre traçados, lutos e vieses
Fizemos o eletroencefalograma e o resultado sairá em 10 dias. Até lá, ficarei alternando entre me ocupar de tarefas práticas para não pensar e vagar num vazio em queda livre constante. É claro que fiquei no google olhando traçados de eletroencefalogramas. Não entendi nada.
O primeiro luto veio com o diagnóstico de autismo.
O segundo veio antes que o primeiro encerrasse seu ciclo, com o diagnóstico de uma síndrome rara (que é a etiologia - vulgo, causa - do autismo).
Parece se repetir uma dinâmica da minha gravidez: mal engravidei, enterrei meu pai; mal enterrei meu pai, meu filho nasceu com 33 semanas e foi para UTIn; mal saímos da pandemia, veio o autismo; mal me acostumei com o autismo, veio a síndrome. Tudo num intervalo de 4 anos. Eu sou muito fresca ou é, realmente, muita pancada? Os lutos de vocês também têm esse péssimo hábito de emendar um no outro de um jeito que quando você chora não sabe mais exatamente por que está chorando?
Quando chegou o diagnóstico de autismo, fui levada à sensação de correr contra o tempo para que qualquer segundo do atraso cognitivo do meu filho pudesse ser amenizado com as terapias; agora, no segundo, a pergunta que me ronda é se vale a pena. O prognóstico da síndrome de Vulto-Van Silfout-de Vries é ruim, não seria a hora de, simplesmente, aceitar? Ou isso seria desistir do meu filho?
Talvez, eu devesse escrever uma newsletter só sobre o que vem a seguir, mas sei lá, aqui é um exercício de fluir e tem algo transbordando agora.
Há um lugar comum na “comunidade autista” que é a afirmação de que o autismo é genético e, portanto, é comum que pais descubram, depois do diagnóstico de seus filhos, que também são autistas.
Eu queria pedir muito cuidado com isso, sobretudo aos profissionais que me leem.
Genético não é sinônimo de hereditário.
Por mais que um profissional seja sério e responsável, ele precisa tomar muito cuidado com o que nós chamamos de viés ou bias, que é essa tendência que todos nós temos de querer confirmar nossas teses, nossos pensamentos, e aqui me permitam, nossa maneira de ganhar a vida, fazendo leituras simplificadas da realidade e que nos beneficiam (e, sim, quanto mais diagnósticos de autismo, mais necessidade de profissionais do autismo, sejamos francos).
Principalmente quando estamos falando de autistas nível 2 e 3 de suporte, é bem possível que estejamos também lidando com autistas sindrômicos, ou seja, que possuem alguma síndrome, sim, genética, que é a causa desse autismo. O fato de quase ninguém ter acesso aos exames genéticos, e parar no diagnóstico clínico de autismo, é uma das barreiras que temos para conhecer essa realidade. A outra é um bando de gente rica e famosa cujos filhos - obviamente - possuem autismo sindrômico e que apresentam-se ao público apenas como pais/mães de autistas. Essas pessoas têm dinheiro e certamente fizeram os mesmos exames que meu filho fez (e até mais). Qual é o b.o. de falar das síndromes, eu não sei.
Ah, por que eu estou dizendo “obviamente”? Porque essas síndromes dificilmente não possuem características fenotípicas. Diferente do autismo nível 1 ou do autismo isolado ou não-sindrômico, a maior parte das síndromes “tá na cara”. E isso não deveria ser um problema. A não ser que alguém tivesse a brilhante ideia de criar um slogan dizendo “autismo não tem cara”… Enfim.
Na síndrome de Zé ainda é difícil falar de fenótipo porque, afinal, são 20 casos no Brasil. Os(as) diagnosticados(as) são todos(as) brancos(as). Uns 2 ou 3 são filhos de médicos. Então, assim, aqui tem um problema ainda muito sério de marcadores de classe e raça antes de mais nada.
Mas, voltando ao genético não é sinônimo de hereditário, nos autismos sindrômicos, ou seja, naqueles em que os exames como o exoma ou o genoma localizam a causa dos déficits cognitivos, motores, entre outros, não são raras as mutações de novo (assim mesmo, de novo, inclusive, em outros idiomas). Essas mutações - exatamente o caso de Zé - não são hereditárias, pois de novo quer dizer, tcharan!, novo, nova, aconteceu ali, naquele DNAzinho, naquele serzinho, naquela transcriçãozinha que não foi bem feita dos DNAs dos pais para o do filho, sem que haja problema nos primeiros.
Então, por mais que a lógica em vigor seja sair distribuindo diagnóstico ou suspeita de diagnóstico como se fosse panfleto de político no semáforo em época de campanha, por favor, tenham, ao menos, o receio do descrédito profissional no sentido mais egoísta da coisa e quando forem explicar aos pais de autistas sobre autismo parem de dizer ou insinuar que é hereditário ao dizer que é genético, pois as duas coisas não são sinônimas.
Quando vocês, profissionais, confundem as duas coisas, promovem uma corrida aos testes - que muitos de vocês mesmos fazem - avaliações, medições, que, não raro, acabam diagnosticando os pais como autistas nível 1 ou, pelo menos, com um TDAH. O nome disso é viés, claro, para ser educada.
Ou vocês orientam os pais a buscarem os exames genéticos diante da hipótese de hereditariedade ou vocês param de insinuar hereditariedade quando dizem “autismo é genético, então é muito provável também que os pais…”. Não é assim que funciona. Eu sei que a confusão favorece um avanço global dos diagnósticos, mas quero crer que, individualmente, trata-se de desinformação, problema de formação acadêmica ou algo inconsciente mesmo. Cientificamente, não há dados que sustentem que autismos não sindrômicos tenham qualquer ligação hereditária com os pais e, nem mesmo os sindrômicos, que podem ser mutações de novo, como é o caso de Zé, assinalam algo que se pode chamar de provável (adj. de dois gêneros; que possui indícios; que se pode provar).
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