Durante muito tempo, a pauta dos direitos de pessoas com deficiência esteve quase totalmente concentrada à direita do espectro político. Não vou entrar aqui no mérito dessa questão porque daria uma longa tese, o contrário do propósito dessa newsletter. Claro que, pontualmente, figuras mais ao centro, mais à esquerda, aqui e ali, existiram e existem, porém, por ter sido tratada mais como uma pauta de caridade e assistencialismo do que de direitos humanos, a direita historicamente levou vantagem.
Parece, no entanto, que as coisas podem mudar ou há uma brecha para que isso aconteça, notadamente, a partir da figura da deputada estadual Andréa Werner, em São Paulo, uma figura de centro-esquerda, que se lançou à política institucional a partir da experiência com o próprio filho, um autista que necessita de alto grau de suporte.
Eu torço muito para que exemplos como o da Andréa se multipliquem nas eleições por todos os municípios do país. Mas eu me refiro ao pacote inteiro que a Andrea representa. Ela é mãe de autista e recentemente foi também diagnosticada com TEA nível 1 de suporte, mas essas duas condições não são suficientes ou desconectadas do conjunto da experiência de Andréa e de sua família na sociedade.
Andrea também é oposição ao governo Tarcísio. Andréa lutou contra a privatização da companhia de água e esgoto de São Paulo (Sabesp). Andréa defende que aborto é questão de saúde pública e não de segurança pública.
É claro que essa deputada tem uma pauta principal, mas ela sabe, por exemplo, que em caso de catástrofe climática, pessoas com deficiência são mais vulneráveis, como nos mostraram os recentes eventos no Rio Grande do Sul, durante os quais abrigos para neurodivergentes tiveram que ser providenciados pela própria sociedade civil, já que o governo estadual não estava preparado nem para o básico, quanto mais para os divergentes. Então, a gente facilmente encontra Andréa em defesa da ciência, da pesquisa, do orçamento das universidades públicas.
Estou aqui listando, mas já vou parar, somente as temáticas que, por tabela, por vivermos em sociedade, essa deputada defendeu, mas que não são propriamente o tríptico autismo/educação inclusiva/planos de saúde. Ah! Bom lembrar também que ela se posicionou contra a aberração chamada escolas cívico-militares.
Estou usando a Andréa como token, como dizem os jovens. Tenho, inclusive, diferenças em relação a alguns posicionamentos dela “dentro” da luta anticapacitista. Mas a minha questão é que eu não consigo simplesmente votar em alguém que tem a luta anticapacitista como pauta central, mas eu nunca vi numa greve de professores, na defesa de uma área de preservação ambiental, numa audiência pública sobre eventos climáticos, num ato contra a privatização da saúde (avançadíssima nas terceirizações em Sergipe del Rey) ou, agora, da companhia de saneamento (DESO).
Eu estava dando uma olhada no quadro geral e caótico que sempre são as eleições municipais e acho que, no Brasil inteiro, haverá um aumento, em termos de visibilidade, de direitos de pessoas no espectro autista porque familiares, notadamente mães, estão se candidatando. Isso é muito bom.
Agora, do meu ponto de vista, se lutamos sempre contra a ideia de que o mundo das pessoas com deficiência é um mundo à parte ou que autistas e suas famílias vivem em seus mundinhos fechados, a representação institucional desses grupos precisa também refletir esse estar no mundo que não se resume à deficiência ou ao autismo. Se insistimos todos os dias que nossos filhos e filhas não são apenas autistas, mas crianças, adolescentes, pessoas, então importa pensar como essas pessoas terão acesso não apenas a terapias, mas à agua, moradia, direitos sexuais e reprodutivos, etc.
Isso sem falar em toda a interseccionalidade que nos obriga a debater e combater o racismo, o racismo religioso, a homofobia, a transfobia. Então, além de anticapacitista, além de compreender o lugar de fala de familiar de autista ou de autista, preciso votar em alguém que eu já tenha visto defender não só essas outras pautas abstratamente, mas em casos concretos que, infelizmente, são muito comuns.
Candidato(a) que denuncia ataque a terreiros de umbanda e candomblé me interessa. Candidato(a) que denuncia recusa a tratamento adequado de gestante trans me interessa. Aliás, procurem no google a prevalência de pessoas trans na população autista e deixem o arco-íris inundar o coração de vocês.
Enfim, pessoas com deficiência, autistas, pessoas com síndromes raras e doenças graves, todas precisam de representação institucional. Mas não é um vale tudo. Não vale qualquer representação institucional.
Não vale aquela que esvazia a dor dos outros, como é o caso de candidatos(as) que defendem a permanência de gestação de meninas que foram estupradas. Não vale aquela outra que alimenta um projeto terapêutico para PcDs no espaço público da nossa cidade e defende a entrada de comunidades terapêuticas chefiadas por instituições religiosas no SUS, deixando muito claro que tem dificuldades com uma noção laica da política. Não vale a hipocrisia proibicionista que defende poder de polícia da guarda municipal para dar flagrante em jovens negros e periféricos porque só concebe o uso medicinal que sua família faz de canabidiol como correto, limpo e justo e nunca parou para compreender o higienismo e o racismo da política de drogas. Enfim, tem muita coisa que não vale em nome da defesa dos direitos dos autistas e de suas famílias. Aliás, tem muita coisa que não vale em nome do meu filho, em meu nome e da minha família, que é o máximo que posso dizer.
Vc está coberta de razão, temos que ficar muito atentos em quem votar.
Sempre digo que não basta um executivo apenas, temos que ter um legislativo compatível, para que as políticas possam ser implementadas com um mínimo de sucesso.