A escola mais cara de Aracaju fez um evento sobre autismo. Eu soube por relatos nas salas de espera das clínicas, não é onde meu filho estuda, nem poderia ser.
Ouvi várias vezes sobre a “semana do autismo” e parece que foi algo grande, bem organizado, ou seja, fizeram bom uso das mensalidades exorbitantes.
Cada mãe que contava, acrescentava uma novidade da programação ou dos corredores.
Gostei de ouvir, senti vontade de participar. Pensei nos meus contatos que poderiam, no ano seguinte, abrir as portas para uma convidada-ouvinte como eu.
O evento, no entanto, não foi pensado para se repetir. Era uma ação, entre outras, de reparação. Um estudante autista havia assediado uma colega.
A palavra certa, em sentido jurídico-penal estrito, é importunado. Ele passou a mão na menina. Dois adolescentes. Ele atípico, ela típica.
Eu sei que as mães de crianças típicas, especialmente de meninos que vão apertar a tecla confirma da hétero-cisgeneridade, por mais primorosa que seja a educação ofertada, sabem (ou deveriam saber) que não estão livres de passar pela experiência de lidar com um assédio (importunação) praticado pelo filho.
Nesses casos, os recursos de que se dispõe passam todos pela premissa de que é possível fazer o filho entender a gravidade, o erro, a canalhice dos seus atos e arcar com uma responsabilização que, por definição, começa pela compreensão do equívoco.
Olho para o meu filho e sinto um aperto no peito. Vou poder contar com esse entendimento, caso ele meta a mão em alguma colega?
Antes do finado twitter (nunca foi X) bater as botas, li o tweet de uma garota falando do problema que têm sido os comportamentos sexualmente inadequados de meninos autistas, adolescentes, nas escolas, muitas vezes, dirigidos a meninas também atípicas.
Olho para o meu filho e minha cabeça gira gira gira gira gira gira gira gira…
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Já me referi ao Caso Dougie (EUA, 4 de janeiro de 1971) aqui, narrado em Outra Sintonia, mas hoje eu vou transcrever. Dougie Gibson era filho de Alec e Velna.
“(…) Dougie, que acabava de completar treze anos, baixou a calça de repente e começou a brincar com a genitália, no quintal, diante de um grupo de crianças no quintal da casa vizinha. Isso causou uma gritaria momentânea entre os garotos, que logo avisaram a mãe, uma amiga dos Gibson chamada Aggie. Se havia alguém no mundo dos Gibson capaz de evitar um pânico generalizado com o acontecido, era Aggie, uma das poucas mães da vizinhança que não ficavam desconcertadas ao ver Dougie entrar em seu jardim com os pais. Quando os Gibson os visitavam, seus filhos sempre incluíam Dougie nas brincadeiras, pois Aggie os incentivava a fazê-lo. Talvez ela não soubesse muito sobre o autismo, mas sabia o bastante para jamais culpar Alec ou Velna quando Dougie fazia algo que ultrapassava os limites do socialmente aceitável. Naquele dia, quando ele começou a se masturbar em público, Alec interferiu no mesmo instante, erguendo rápido a calça do filho, constrangido por ele, ralhando e, ao mesmo tempo, pedindo desculpas a Aggie, que, na verdade, estava longe de exigir tal coisa. Ela entendia: Dougie estava entrando na puberdade e fez o que fez com toda a naturalidade. “Culaculacula.” Essa foi a única coisa que aquele rapazinho alto e bonito teve a dizer a si mesmo, na ocasião e sempre. Era difícil imaginar que sua indiscrição fosse uma tentativa deliberada de criar um escândalo no tanque de areia — mesmo porque aquele sentimento físico era muito novo para ele, e “as regras” que o disciplinavam, muito distantes da sua compreensão. Uma pessoa como Aggie podia perdoar e esquecer o episódio embaraçoso. Mas Alec não. Aquilo começou a persegui-lo — a percepção de que o sexo representava mil maneiras novas de Dougie ficar perigosamente fora de sintonia com o mundo. Se aquele tipo de coisa se repetisse, seu filho podia ser facilmente estigmatizado como algo que não era: um pervertido, uma ameaça. Gente assim ia presa e era espancada até a morte. E ele tinha apenas treze anos. Dougie ainda tinha toda a adolescência pela frente, e depois a idade adulta. As complexidades sociais que teria de negociar pareciam avassaladoras. Alec não podia conceber que o menino chegasse a ser capaz de aprender a observar os limites estabelecidos por conceitos como privacidade e pudor. Pelo contrário, previa o matagal do autismo, do sexo e da etiqueta como uma selva que engoliria seu filho. Tinha certeza de que as coisas só podiam piorar quando Dougie ficasse mais velho, mais atrevido e mais forte. O mundo era cruel. Ele estava convencido disso”.
Donvan, John; Zucker, Caren. Outra sintonia: A história do autismo (Portuguese Edition) (pp. 158-159). Companhia das Letras. Edição do Kindle.
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É claro que hoje se propaga uma série de intervenções comportamentais que não estavam disponíveis na época de Dougie. Não vivemos mais nas mesmas condições de 1971.
Ao mesmo tempo, leio e ouço por aí “passa a mão e a desculpa é que é autista”.
Sou mãe de autista e sou mulher. Sei da recusa inegociável do acesso ao meu corpo, pouco importam as armas que terei que utilizar. Sei também que o autismo do meu filho é parecido com o de Dougie.
No primeiro teste que fizemos, Ben atingiu a marca de 11% das habilidades esperadas para a idade dele. Desconfio que isso não tenha mudado muito desde então, seus marcos do desenvolvimento são sempre abaixo do mínimo, logo, suas ações sociais desconcertantes não são uma desculpa.
Reitero aqui a minha defesa pela separação dos diagnósticos de autistas nível 1 de suporte dos demais. É perverso, inclusive em situações como a que estou tratando aqui, que autismo continue sendo um diagnóstico guarda-chuva que pode abrigar, sim, alguém que sabe perfeitamente os limites sociais do aceitável e alguém que… tem 11% das habilidades esperadas para sua idade cronológica.
A puberdade do meu filho é um horizonte que me assusta. Aliás, desde seus pequenos comportamentos masturbatórios infantis, esse pânico surgiu. Passei a ler sobre assistência sexual, existente e regulamentada em outros países para pessoas com deficiência; passei a pensar em homeschooling a partir de certa idade; em ir morar no campo.
Podem me chamar de louca, ansiosa, mas a real é que eu não estava preparada para nada do que vivo hoje e gostaria de estar menos despreparada para o que vem por aí. Pelo meu filho. Pela dignidade dos corpos de todas as mulheres.
Vc não é ansiosa, vc tem os pés no chão e nem sei se conseguiria me colocar no seu lugar e nem no de nenhuma mãe atípica,a única coisa que posso fazer é me solidarizar com a sua preocupação e sei que, quando chegar a hora vc vai saber o que fazer.