ainda estou aqui
O título do livro do Rubens Paiva - figura pela qual nutro sentimentos ambíguos - agora bastante famoso pela adaptação para o cinema pelo Walter Salles - idem, ibidem - foi a única coisa que me veio à mente hoje e, quem me conhece há mais tempo, sabe da minha dificuldade com títulos. Então, foi mal aí, galera, mas é óbvio que não vou escrever sobre literatura ou cinema.
Na semana passada, aconteceu algo interessante, levemente divertido, que não é incomum na minha vida e me deu vontade de escrever sobre isso.
Dois amigos queridos, Gerson e Lucas, que não se conhecem, vieram a mim com a mesma sugestão: que eu transformasse a minha experiência de mãe atípica, isso que faço aqui em pequena escala, em um projeto maior, uma influenciadora digital ou algo do tipo.
Meus amigos estão preocupados com o meu futuro e têm razão de estar. Eu mesma estou desesperada. Faz todo sentido a sugestão deles.
Ao mesmo tempo, não faz sentido algum. E isso me trouxe algumas boas risadas, pelo que agradeço aos dois.
Antes de mais nada, é preciso dizer que antes de ser mãe, antes de ser mãe de autista, já havia gente na minha vida achando que isso era viável, que eu deveria ao menos tentar. Baruc, você está por aí? Claro, a pauta era outra, mas a proposta era parecida.
Ri e continuo rindo do que me parece uma perspectiva fantasiosa, embora sempre bem intencionada. É que, talvez, não tenha ficado claro para muita gente que eu jamais trabalharia com a minha imagem, para começo de conversa.
Eu não gosto do que vejo no espelho desde os 10 anos de idade. Tenho 43. Entre os 15 e os 17, eu tomava laxante 2 ou 3 vezes por semana para emagrecer, frequentava uma academia sem comer nada, dormia cedo para não comer à noite. Praticamente não existem fotografias minhas dos 12 aos 16. Eu destruí todas que pude. Essa relação com minha imagem atravessou tudo (trabalho, relacionamentos, amizades) e segue aqui ainda (des)organizando muita coisa.
Eu jamais colocaria minha imagem para jogo. Se tem um vídeo meu no Instagram, podem ter certeza, é porque algo muito grave aconteceu, mas não tão grave a ponto de manter o vídeo por muito tempo disponível.
Esse é um dos grandes motivos pelos quais eu sou palavra, eu me tornei palavra. A palavra é mais democrática, ainda mais nas redes, todo mundo pode, todo mundo escreve. Eu escrevo porque preciso, sequer considero que tenho algum talento especial para as letras (conversava hoje mais cedo com a Ana Letícia que eu não sei criar personagem).
Um outro fator que torna a ideia dos meus amigos ainda mais divertida e irreal para mim é que eu suspeito que eles - e talvez a maioria de vocês que me lê também - não façam ideia de que essa pirâmide dos influenciadores(as) do mundo autista já acabou. Além dos profissionais que produzem conteúdo, o nicho de mães - e até pais! - atípicos mostrando suas rotinas, seus conhecimentos, suas dificuldades, está absolutamente lotado. Tem desde a estética mais rica até a mais pobre (propositalmente fabricada ou não). Tem mãe solo. Tem mãe adotiva. Tem mãe autista com filho autista.
É possível que vocês não tenham dimensão disso tudo porque, por motivos óbvios, o famigerado algoritmo não entrega a vocês o que me entrega. A maioria de vocês talvez seja como a Aline de dois anos e meio atrás, que tem uma amiga(o) aqui e outro ali com um filho autista (ou outra deficiência), que acompanha com carinho, atenção e empatia, os caminhos dessa família amiga, mas que não tem interesse próprio ou específico na questão.
Atenção: isso não é uma crítica. Tenho certeza absoluta que vocês acompanham temáticas com um mundo de informação produzida do qual não faço a menor ideia, mas que diz respeito a problemas, dores e experiências caras a vocês. É assim que é.
Amigos, amigas, amigues, eu sei que minha carreira acadêmica está de partida, que tudo pelo que lutei, inclusive contra todas as expectativas familiares dirigidas a uma filha única, está se desmanchando no ar, embora nunca tenha chegado a ser propriamente sólida. Não deu tempo. Estou vivendo esse luto que é mais um para a minha coleção de 2019 para cá.
[2019 - perdi meu pai; 2020 - meu filho nasceu prematuro e durante a pandemia, perdi todas as experiências mais comuns e desejadas de uma gestante/mãe, como amamentar, por exemplo; 2022 - o diagnóstico do autismo do meu filho me tirou o chão e o horizonte; 2024 - o diagnóstico de uma síndrome rara do meu filho me tirou o resto].
Só que eu decidi dar um enterro digno ao meu sonho. Então, como minha tese de doutorado foi uma das 15 melhores do país em 2022 na área de Ciências Sociais, mesmo sem ter contato dentro de alguma editora que não cobre antecipado para publicar; mesmo sem network no mundo editorial; mesmo à base da Benfeitoria, eu vou publicar a tese. Se tudo der certo, o financiamento coletivo ficará pronto ainda esse ano e o livro sairá ano que vem.
Preciso disso. Preciso de um encerramento bonito e acho que o livro pode me dar isso. Se não fosse um livro sobre uma pesquisa na prisão, se não fosse o livro do Rubens Paiva, o meu poderia perfeitamente se chamar “ainda estou aqui”. Porque livro permanece e porque a ideia é justamente deixar que essa Aline que não vai mais virar professora/pesquisadora de uma grande universidade pública fique registrada para além de um devaneio meu.
Por fim, eu não vou virar influenciadora sobre maternidade atípica, autismos e quetais por um e mais definitivo motivo. Mesmo que eu esteja encerrando o ciclo do sonho acadêmico, minha busca agora é conseguir uma forma de existir (vulgo, me sustentar e a meu filho) que não me resuma a ser mãe ou mãe de autista. É uma luta inglória, eu sei, quase nenhuma mãe atípica escapa, eu sei. Mas eu não sei, caso eu perca mais essa batalha, se vai sobrar Aline para contar história. Digo, escrever newsletter.
[Então, torçam para que eu passe num concurso qualquer, para um cargo qualquer, inclusive com exigência de ensino médio, ou que consiga um cargo comissionado na política local, ou que me torne professora do ensino médio, façam suas orações, acendam velas, façam indicação minha para trabalhos temporários, de preferência, remotos, lembrando que eu conheço bem o ordenamento jurídico, as políticas públicas, a produção de criminalidade, de criminalização, as prisões. Ainda, que eu falo bem em público e escrevo suficientemente bem para qualquer meio de comunicação e já tenho experiência de pesquisa no terceiro setor].
Lembrete: essa newsletter é e sempre será gratuita. Caso deseje voluntariamente fortalecer minha escrita, você pode assinar um plano de R$ 10,00 por mês; R$ 100,00 por ano ou fazer pix, a qualquer momento, de R$10,00 ou qualquer valor, para 79981565384 (celular).
ADENDO: eu recebo R$ 9,21 por cada assinatura de R$10,00 (a plataforma fica com 0,79 centavos), e minha meta é chegar a 109 inscrições pagantes pela plataforma porque o Wagner Moura me ensinou que é assim que tem que ser. Então, quem puder convidar amigues, serão bem recebides.