Entre os dia 10 e 12 de setembro de 2024, o Ministério da Educação promoveu o evento Seminário Internacional: Autismo e Educação Inclusiva. Foram convidados ao evento, os amigos do rei governo que, neste caso, é representado pelo Diretor de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, Alexandre Mapurunga. O evento era diverso, desde que a perspectiva de educação inclusiva contemplada fosse a de Mapurunga, que é autista, suponho que nível 1 de suporte, e fazia parte da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), entidade obviamente convidada para o seminário. Outras organizações convidadas foram a Autismos Brasil e a Vidas Negras com Deficiência Importam, todas alinhadas ideologicamente a Mapurunga.
E qual é uma das principais batalhas dessa diretoria do MEC? Barrar toda e qualquer “contaminação” da Análise do Comportamento Aplicada (ABA) em políticas públicas de educação no Brasil.
Algumas hipóteses podem ser levantadas para explicar o porquê tantos autistas nível 1 de suporte (mas nem todos e nem só eles!) são contra ABA. Vou levantar algumas, lembrando que hipóteses são afirmações que buscam confirmação ou refutação, segundo o método científico.
- contexto histórico: na internet dos anos 10, fóruns de adolescentes e jovens com variados sentimentos de inadequação à sociedade, alguns diagnosticados e outros se autodiagnotiscando, criaram uma verdadeira subcultura autie. Uma das principais características desses grupos foi constituir uma identidade autista, fortalecida pelas trocas constantes, reforço da autoestima, aprendizagem horizontal. Eram comunidades, à época, do que hoje chamamos de autistas nível 1 de suporte e que questionavam, entre outras coisas, métodos terapêuticos que não eram adequados às suas necessidades. Percebam que, nessa época, o DSM, que classifica os transtornos de saúde mental, ainda não falava em autismos separados por níveis de suporte, e muitos desses jovens tinham diagnóstico de Síndrome de Asperger, ou seja, eram funcionais, alguns superdotados ou com altas habilidades. Há um bom capítulo no livro Outra Sintonia sobre essa subcultura.
(Hoje, adotar essa postura é não só anacrônico como infantil e irresponsável, pois nem o DSM, nem a ABA são mais os mesmos).
- colonização do debate: o item anterior era sobretudo uma realidade americana. Os relatos “ABA é tortura” em 2024 são majoritariamente replicações e adaptações ao nível fanfic de relatos desses fóruns. Tanto é que o que se tem de denúncia séria contra ABA hoje é feita pelos próprios cientistas, supervisores, aplicadores e acompanhantes terapêuticos (ATs) da ABA que, sim, têm plena consciência que a formação “torne-se especialista em ABA pela internet em 3 meses” e a abertura de clínicas que oferecem ABA sem AT, sem visita escolar, sem Plano de Intervenção, sem metas quantificáveis e demonstráveis, é do mesmo nível científico dos suplementos alimentares gummies para calvice.
(Porém, ao invés de ouvirem esses profissionais, esses que têm críticas e não palavras de ordem traduzidas do google translator, o MEC escolhe como parceiros os últimos, afinal, a César o que é de César, foram os últimos que emplacaram uma diretoria no próprio MEC).
- ressentimentos de ordens variadas: pessoas foram submetidas a terapias inadequadas na infância e isso deixou marcas; pessoas não foram submetidas a terapias adequadas na infância e isso deixou marcas; pessoas têm filhos que se beneficiariam muito de umas 4 horinhas de ABA por semana, mas não têm como bancar e isso deixa marcas.
(O ser humano é um bicho complicado, conscientemente ou não, às vezes, a máxima “se eu não como a feijoada, boto o dedo para azedar” prevalece).
- disputa de mercado: há um mercado dos autismos porque estamos no capitalismo. Há um mercado para tudo. A educação já é uma mercadoria há décadas, embora tenhamos que preservar palavras de ordem ao contrário. Uma das principais acusações do MEC e seus aliados aos defensores da ABA, portanto, é que estão ali defendendo seu bolso, afinal, eles vendem cursos de capacitação, orientação, assim como vendem supervisão, produtos, etc e tal. Tudo verdade, mas igualmente verdade que só há esse mercado porque o Estado e os governos deixaram espaço para tanto. Se estivessem minimamente acompanhando os debates e desdobramentos da ciência em relação aos autismos já teriam seus próprios profissionais concursados capacitando outros, desenvolvendo novas tecnologias e, assim por diante, há mais de 20 anos.
(O que também é divertido nesse argumento é que eventos como o que o MEC organizou e convites como os que foram distribuídos nos mostram trajetórias de pessoas que literalmente ascenderam socialmente na militância pelos autismos e, olha, nada contra. Ruim mesmo é a hipocrisia. Então, sim, há um mercado - não só da ABA, dos autismos em geral, incluindo terapias em geral que não são ABA - e que não pode de forma alguma dominar e dirigir políticas públicas, mas para isso é necessário parar de fomentar um agente de mercado em detrimento de outro: está todo mundo vendo e está feio!)
- misoginia e disputa pela eterna indignidade de falar pelos outros: autistas níveis 2 e 3 de suporte têm mais dificuldades em linguagem expressiva. Alguns são verbais, mas com sérias limitações; alguns não são verbais e se comunicam de outras formas; outros comunicam-se de maneira muito restrita quanto ao repertório e interlocutores, e por aí vai. Quando se fala de níveis de suporte, suporte não é um poste, não é uma cadeira, não é uma pedra. Suporte, embora possa envolver poste, cadeira e pedra, é uma PESSOA ou várias, se o autista tiver sorte. A maioria não tem e o tal suporte se chama mãe. Mãe é uma pessoa. Seja por efeito do que listei no primeiro item - autistas ou não, adolescentes são seres que se revoltam contra a autoridades dos pais e isso é bom - seja pela misoginia nossa de cada dia (que eu aposto mais como hipótese), o fato é que autistas nível 1 de suporte tendem (alguns, nem todos!) a achar que eles (em geral, são rapazes) são os únicos legitimados a falar sobre a experiência com autismos. As mães dos autistas de nível 2 e 3 de suporte são sumariamente excluídas com base numa deturpação ignorante da noção de lugar de fala. Problema: não há, na ausência de melhor comunicação própria do autista nível 2 e 3 de suporte, melhor pessoa para comunicar junto a ele(a) do que quem cuida dele(a).
[Eu sou do “time que cuida”. Pode ser homem, mulher, não binarie, mãe, pai, avó, tia, tio, prima, vizinha, não importa. Quem cuida, fala. Quem cuida tem assento no debate, inclusive, porque quem cuida é quem menos ganha com isso. Quem cuida não ganha autonomia, perde; não ganha dinheiro, perde; não ganha um meio de vida, perde; não ganha atenção do Sr. Mapurunga ou do MEC, perde. Mas os autistas nível 1 de suporte, em geral garotos (nem todos!), parecem ter como missões: 1) afastar quem cuida do debate; 2) como quem cuida são, em geral, mulheres, afastar mulheres do debate. Isso tem nome].
Por fim, há, inclusive, uma máxima estranha de que “nós” só chegamos até aqui em “conquista de direitos” por causa das lutas dos autistas de nível 1. Olha, isso não é verdade nem nos EUA, quanto mais quando a gente lembra das mães acorrentadas em Brasília, em frente ao STJ, há 2 anos, contra a retirada de terapias, tratamentos e medicamentos dos seus filhos (pesquisem por: rol taxativo, caso não estejam a par da discussão). Esse país é chegado a um latifúndio mesmo em terras imaginárias…
De volta ao MEC e seu evento, as três organizações citadas entenderam adequado fazer uma denúncia à nova Ministra dos Direitos Humanos presente ao seminário, Macaé Evaristo, que pode ser resumida à afirmação de que ABA é uma terapia manicomial - e essa acusação é sobre os profissionais, mas também sobre as famílias -; à necessidade de se investigar o “excesso de horas de terapias” (algo que jamais vai atingir somente a terapia ABA, e se os denunciantes estivessem mesmo na linha de frente da luta por saúde e cuidado de autistas saberiam disso); e um conjunto descoordenado de anexos que não conversam entre si e trazem acusações sérias com nome e foto de pessoas que, se fosse eu no lugar, processava para arrancar uns bons danos morais.
Porém, hoje é domingo, pede cachimbo, eu não fumo, mas cuido, e não posso prolongar o texto.
Como diriam os americanos, então, To be continued…
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Olá, Aline! Obrigada pelo texto. Sou mãe de um adolescente com nível de suporte 3 e não tinha até agora tempo para entender melhor o que rolou no evento. Estava há dias querendo ver quais foram as tuas percepções sobre a manifestação encaminhada para a nova ministra dos Direitos Humanos.
Gracias por esclarecer de onde vêem essas divergências. Fico super receosa de como isso vai impactar o acesso às terapias via planos de saúde.